7.7.07

Transcrição - Nelson Rodrigues...


Como é antigo o passado recente! - eis a exclamação que não me farto de repetir. E, realmente, como a melindrosa de 1929 é anterior a Sarah Bernhardt. Como o Ford de bigode é mais velho do que a charrete de Ben-hur. Aí está o óbvio que ninguém enxerga. E, no entanto, qualquer memorialista tem escrúpulo de fazer a história da véspera. Meu Deus, o que aconteceu ontem ou, menos do que ontem, o que aconteceu há quinze minutos pertence tanto ao passado defunto como a primeira audição do "Danúbio azul".

Bem. Fiz este breve reparo para referir uma dura experiência que acabo de sofrer, na carne e na alma. Foi sexta-feira e, portanto, há 72 horas. Saímos os dois casais: - eu e Lúcia, Celso Bulhões da Fonseca e Teresa. Eis o nosso destino: - Bruni-Copacabana, íamos ver Terra em transe, de Glauber Rocha. Na própria tarde de sexta-feira, perguntei a um conhecido: - "Bom o filme?". E o sujeito, que é um legionário da esquerda idiota, respondeu: - "Fascista". Insisti: - "Rapaz, não perguntei se era fascista. Perguntei se era bom".

(Singular geração esta que anda por aí. Imaginem rapazes e raparigas - digamos "raparigas", como Júlio Diniz - que se fingem mais imbecis do que são. E assim desponta nas esquerdas brasileiras um tipo único, inédito, empolgante, de cretino. É o débil mental por simples pose ideológica; e o sujeito se põe a babar na gravata, achando que só assim serve ao socialismo.)

Diga-se de passagem que tivemos, eu e o desafeto de Terra em transe, uma discussão truculenta. Disse-lhe que, para meu gosto, tanto fazia filme comunista, fascista, espírita, budista, macumbeiro ou jacobino. Eu queria, apenas, com minha feroz simplicidade, que fosse um bom filme e nada mais. O bate-boca não chegou a nenhuma conclusão inteligente. Por fim, perdi a paciência e fiz-lhe o apelo: - "Não me cumprimente mais. É favor. Me negue o cumprimento".

Largo o falso idiota (realmente, é um rapaz de talento), apanho um táxi e passo na casa do Hélio Pellegrino. Lá encontro o Gilberto Santeiro, jovem cineasta patrício. O cinema brasileiro tem uma meia dúzia (não mais) de rapazes prodigiosos. São possessos de sua arte. Potencializados de paixão, chegam a meter medo. E o nosso Gilberto Santeiro é um dos que matam e morrem por cinema. Pergunto-lhes: - "Que tal Terra em transe?". Deu-me a resposta fanática: - "Genial!".

A fé sempre me comove, mesmo que o santo ou o deus não a mereça. Duas mãos postas e mais a luz de um círio fazem uma cena irresistível. O Gilberto Santeiro não tinha a vela, mas estava quase de mãos postas. E assim, crispado de uma fé autêntica, ele me tocou. Levantei-me: - "Gilberto, vou ver o filme e depois te falo".

Confesso que, na casa do Hélio Pellegrino, comecei a gostar de Terra em transe. Mais tarde, entrando no Bruni-Copacabana, não tinha mais dúvida: - "Gostei", eis o que pensava. E já me via dizendo ao Gilberto Santeiro: - "Genial". Na porta do cinema, paro um momento. Outro rapaz, flor das esquerdas, veio me dizer: - "O elenco não gosta do filme. Está indignado. Acha o filme fascista". O sujeito afirmou-me, quase sob palavra de honra, que Paulo Autran, Danuza, e outros, e outros, estrebuchavam de furor impotente e sagrado. Não sei se é verdade. Passo adiante o que me foi dito.

A indignação de um elenco não é um fenômeno novo para mim. A maioria dos meus intérpretes representam os meus textos com o maior desprazer e humilhação. Mas, como ia dizendo: - entrei no cinema e vi o filme. Entre parênteses, acho comovente a figura de Glauber Rocha por muitos motivos, inclusive este: - é um neurótico. Está a um passo da loucura; e essa proximidade me parece vital para a obra de arte. Não me venham falar de Goethe, que era um suicida e o mais lúgubre dos suicidas: - o fracassado. E nós sabemos que o brasileiro não tem nenhum motivo para ser neurótico. Cada um de nós há de morrer agarrado à sua angústia.

Fiz, durante Terra em transe, o que fez, tempos atrás, Cyro dos Anjos. Ao lado de Carlos Castelo Branco, o autor de Abdias assistia à minha peça Dorotéia, no já demolido Teatro Phoenix. E o tempo todo Cyro cochichava para o Castelinho: - "Que mistificação! Que mistificação!". Sexta-feira, sessão das dez a meia-noite, eu repetia: - "Que mistificação! Que mistificação!". E o Celso Bulhões da Fonseca ouvia e calava. Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em transe.

Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade, mansa, translúcida, eterna: - o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim, eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar na gravata.

Saio do cinema e, antes de entrar no automóvel do Celso faço este resumo crítico: - "Terra em transe é um texto chinês de cabeça para baixo". A platéia não entendera nada, mas, coisa curiosa: - suportara as duas horas com uma paciência ou, mais do que isso, com um respeito e um silêncio totais. Era como se estivéssemos, todos, numa igreja. E se por lá aparecesse uma mosca, seu vôo faria um ruído insuportável (súbito, descubro que não há moscas na missa). Domingo encontrei-me, no Estádio Mário Filho, com o Luís Carlos Barreto. Desfechei-lhe a piada: - "Um texto chinês de cabeça para baixo". Cuidei que ele ia revidar, irado. Pelo contrário: - achou uma graça infinita. Soube, posteriormente, que anda por toda parte, fazendo uma promoção feroz da graça cruel.

E, no entanto, Terra em transe não morrera para mim. Da madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. De repente, no telefone, com o Hélio Pellegrino, houve o berro simultâneo: - "Genial!". Estava certo o Gilberto Santeiro, quase um menino. Sim, pálido de certeza como um fanático. Nós estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda.


. Nelson Rodrigues .

Texto contido nas páginas 228-230 da coletânea de crônicas "A menina sem estrela - Memórias". Publicado originalmente em 1967, no jornal "Correio da Manhã".

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