Alain Resnais
Hiroshima, meu amor
Pode-se imaginar Vélasquez alcançando a duras penas seu "Las Meninas" e Picasso de pronto já bordando por cima suas espantosas variações? Certamente que não. Ora, é um pouco o que acaba de se produzir. Com Hiroshima, meu amor, Alain Resnais tira o cinema do século XVII para o mergulhar, sem transição, em pleno coração do século XX.
O cinema, em nossa época de formalismo rei, permanecia o último refúgio do classicismo. Não por vocação ou por privilégio especial. Mas é o apropriado para uma arte virgem, tendo atingido a maturidade de sua técnica, se desabrochar na plenitude de seu modo de expressão, esgotar todo campo possível de sua forma e, pelo feliz casamento entre a forma e o fundo, oferecer-se o luxo de - se fixar como objetivo - agradar imediatamente. A era de ouro clássica é este momento privilegiado onde uma arte cobre a extensão completa de suas virtualidades, onde cada um de seus fragmentos se cimenta naturalmente em um todo.
O modernismo começa a partir do instante em que os artistas se vêem constrangidos a exprimir novas maneiras de pensar, descobrir minas que a era de ouro clássica se contentava em guardar sem explorar. Isto é dizer, para continuar no terreno da pintura, que o impressionismo, depois o cubismo, depois o abstrato, se encontram já implicados na obra de Titien ou de Vélasquez, mas não o inverso. Assiste-se, então, a uma série de fragmentações mais e mais encadeadas, cada escola moderna se tornando clássica para a seguinte. Segundo esta tese, o drama do artista moderno consiste em tentar reencontrar a plenitude e a totalidade de sua arte partindo apenas de fragmentos. Seu objetivo não é mais então o de agradar, mas de alcançar isto, custe o que custar.
O filme começa com a imagem de dois seres abraçados e nós iremos assistir à sua dolorosa separação, à dissociação progressiva destes dois seres, uma francesa e um japonês. Ela, Emmanuelle Riva, porque não tem nome no filme, veio a Hiroshima como atriz contratada para trabalhar em um filme internacional sobre a paz. Ela encontrou este japonês e o que devia ser apenas passageiro torna-se amor violento. Nós somos convidados a assistir à tomada de consciência deste amor.
Ora, este aí desperta em Emmanuelle Riva a lembrança de um outro amor, também violento, que em Nevers ela experimentara, durante a guerra, por um alemão.
Pouco a pouco, ela evoca a história deste amor: a morte de seu amante logo antes da Liberação, sua própria humilhação em praça pública, seu claustro na casa de seus pais, aprisionada um inverno inteiro no porão ou em seu quarto. E suas lembranças lhe são arrancadas na ordem afetiva, as mais penosas só vindo por último. Com Hiroshima, meu amor, Alain Resnais coloca em termos de cinema as preocupações estéticas modernas das outras artes. Ele rompe com a moldura do relato narrativo e introduz a técnica romanesca cara à Faulkner: o passado dos personagens ressurge em lufadas na superfície do presente, e também assim, envenena este presente. Por outro lado, introduzindo o cinema dentro do cinema, Resnais se une aos trabalhos literários mais recentes de um Klossowsky ou de um Borges: ele nos oferece a reflexão num segundo grau, ele nos convida ao jogo do espelho. (Se nós quisermos confirmar a tese inicial pré-citada, poder-se-ia dizer que Cervantes, pela sua maneira de conceber o segundo tomo de Don Quixote já esboçava este jogo de espelho.) Da mesma forma, um musicista poderia se deliciar encontrando no ritmo e na montagem dos planos de Hiroshima, meu amor, a influência de Stravinsky. Enfim, pictoricamente este filme evoca o cubismo, Picasso e Braque.
Moderno, Hiroshima, meu amor o é ainda pelo seu tema. Tragédia da impossibilidade da união e da plenitude de si. Trata-se da vitória do despedaçamento, da dissociação, do fragmentário. É impossível ser totalmente um, pois nós vivemos no instante e cada instante nos condena ao nascimento, mas também à morte de uma parte de nós mesmos. Este é talvez o símbolo profundo da primeira imagem do filme. Não se vê nada além de dois corpos abraçados, indistintos um do outro e cobertos pouco a pouco por uma chuva de cinzas. Esta cinza, podemos imaginar como aquela mesmo da bomba atômica, quer dizer, como aquela dos vestígios da guerra que ainda recaem no presente e o contaminam. Mas eu prefiro ver aí o símbolo desta dialética do instante: no mesmo momento em que estes seres "se incendeiam um pelo outro" (como é dito em certo momento no texto), a cinza deste fogo, a cinza do esquecimento já os recobre.
A partir desta imagem-chave, o filme se organiza seguindo a figura geométrica de um cone cuja base será a distância que separa o japonês e a francesa e que se traduz de uma forma puramente espacial pela corrida de um em direção ao outro através de Hiroshima. Os fragmentos do passado de Emmanuelle Riva formaram um bloco cada vez mais compacto que separa irresistivelmente os dois amantes. Revivendo este passado, e o imiscuindo no presente, Emmanuelle Riva toma consciência de que ele não é mais que uma lembrança, que ele está morto nela, que ele está esquecido. Assim sendo, este amor atual entre ela e o japonês é também destinado ao esquecimento, à morte, ele é irremediavelmente condenado. "Eu sei que eu te esquecerei, eu sinto que eu já te esqueço" grita ela ao fim do filme para o japonês.
Estando seu filme baseado na dialética, Resnais se obrigaria em exprimi-la na forma, o duplo movimento de negação e afirmação. Ora, seu sucesso é total. Ele o atinge tão bem em seus movimentos de aparelho quanto em sua montagem. Assim este marcante travelling de recuo, que percorre Hiroshima durante o comentário de Emmanuelle Riva, nos faz compreender que ele corresponde ao tempo mesmo do ato de amor. Pela velocidade deste travelling, nós revivemos a sensação de embriaguez e de comunhão que toma nossa heroína e, ao mesmo tempo, a imagem da distância percorrida desperta em nosso espírito a idéia de fuga que a arrebata então.
A montagem de Resnais, mesmo podendo evocar as teorias musicais de Stravinsky, prolonga sobretudo as teorias de Eisenstein sobre montagem atrativa. Nada aqui de muito impressionante, já que Resnais como Eisenstein baseiam suas estéticas na dialética marxista. Porém, Resnais insiste mais sobre seu duplo movimento simultâneo e contrário. Por exemplo, assim que Emmanuelle Riva vê a mão do japonês menear-se enquanto ele dorme, esta imagem faz surgir com força a imagem da agonia do alemão, mas mesmo sendo uma imagem que nasce com incômodo, é de pronto rejeitada.
Ainda dialética esta proposta poética de Resnais acerca da doçura terrível, que se encontra incluída no próprio título. Hiroshima, meu amor, dois termos que formam algo como uma mistura destoante. Como em Picasso (não esqueçamos seu curta-metragem sobre Guernica), Resnais adora mostrar simultaneamente a face do terrível com seu perfil de doçura. Portanto, estas imagens horríveis de feridos radiativos acompanhadas por um comentário lírico e bucólico sobre a primavera e o renascimento das flores em Hiroshima.
Hiroshima, meu amor é um filme dez anos à frente. Ele desencoraja toda crítica. Qual será sua influência sobre o cinema? É o fim do classicismo cinematográfico? Ou, ao contrário, pela própria perfeição de seu aspecto inovador, ele condena antecipadamente toda veleidade em perseguir este caminho? Tantas questões que só o tempo poderá responder.
JEAN DOUCHET
(Arts nº 727, junho de 1959)
Texto contido nas páginas 278-282 do volume 78 da coleção Petite anthologie des Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". Tradução feita por José Roberto Rocha.
O ano passado em Marienbad
Veneza 61 (...) foi dominado muito claramente por O ano passado em Marienbad, e é justo que o filme de Resnais tenha obtido o grande prêmio. (...) Se por um lado eu reconheço a perfeição do trabalho de Resnais, por outro eu confesso ser, cada vez mais, violentamente contra o princípio que preside sua concepção. Eu não acredito na penetração da câmera no mundo mental. Aí está a fonte de todas as arbitrariedades. Nada é mais inquietante que ver desenrolar-se diante de si a representação da consciência vivida, interpretada e entregue segundo uma lógica objetiva. Há aí uma contradição interna entre a forma do filme que se apresenta como um jogo puramente espirituoso, e seu objetivo que é de explorar as regiões misteriosas do imaginário. Ora, eu acredito que é principalmente no cinema que se deve aplicar este programa que Baudelaire assinava na pintura: trazer a tona o que há dentro pelo que há fora. Estimo que um Mizoguchi ou um Lang tenham indo mais longe no imaginário que todos os Maffenbad do mundo, e suas obras permanecem abertas, ao passo que o filme de Resnais se fecha e limita-se a si mesmo.
No fundo, Marienbad não é nada mais que uma versão moderna, talentosa, inteligente, de uma extrema beleza, e tudo mais o que se queira, de Caligari. De forma similar, e porque nos é necessário penetrar no mundo mental, a deformação das aparências é exigida. Em Marienbad, esta deformação toma corpo, certamente, mais sobre o tempo que sobre o espaço, mas isto não impede que se trate de um cinema inteiramente fundado sobre a deformação, os procedimentos e as trucagens. O "Tout-Cinéma 1925" parece ter se encontrado voluntariamente neste hotel frio, lúgubre, sinistro, por onde circulam fantasmas: o expressionismo caligaresco margeia um surrealismo que ousa, ele, na falta dos personagens, dizer seu nome, e a montagem por atração à la Eisenstein, que faz de cada plano um bloco estático, corteja o cinema puro onde os movimentos de aparelho são desprovidos de qualquer função que não aquela da sensação que procuram. Só falta o cinema-olho, abandonado para Jean Rouch. Por que milagre, dito isto, os erros do passado se tornariam hoje virtude única? A via de Resnais é aquela dos "grandes à margem" do cinema: Eisenstein ou Welles. Assim que ela atinge tal nível, ela é em si admirável. Mas em si somente. O pior dos cineastas, se inspirado nos princípios cinematográficos de Lang, Hawks, Walsh, etc., fará um mau filme, mas visível. Ao contrário, um filme influenciado por Resnais tem toda a chance de ser invisível e insuportável. Quantos filhos de Hiroshima, idiotas e monstruosos, nós já não temos a lamentar? No entanto, estes serão anjos de beleza em comparação com os filhos de Marienbad.
JEAN DOUCHET
(Trecho da cobertura do festival de Veneza de 1961)
Texto contido nas páginas 198-200 do volume 78 da coleção Petite anthologie des Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". Tradução feita por José Roberto Rocha.
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