18.6.07

Transcrição - Vinicius de Moraes...


ROSEBUD


Citizen Kane está acabando seus dias na cidade. Agora vão começar as mutilações nos cinemas de bairro, os desgastes do celulóide, e o filme logo entrará no seu processo de caquexia; daqui a seis ou sete meses, passando de trem lá pelo Engenho de Dentro, veremos com saudade o grande cartaz, com Welles agigantado, na sua camisa branca de punhos fechados, num muro de um pequeno cinema caiado de amarelo.

Destino engraçado, o dos filmes. Não ficam na estante, como os livros; nem na parede, como os quadros; nem nos discos, como a música. Ficam na lembrança, apenas, Será por isso, talvez, que nos deixam, alguns, tanta saudade. É que marcam melhor certas fases da vida, certos sentimentos, certas lutas; e se os revemos assim, no muro de um cineminha de subúrbio, eles nos são restituídos de um modo particularmente intenso. Deu-se tantas vezes isso comigo. Nunca me pude esquecer de um cartaz velho da Dama das camélias, visto, uma madrugada, numa cidadezinha de Minas. Eu estava no trem e não foi senão um momento. Mas deu para me emocionar o resto da viagem e me perturbar umas férias inteiras, lembrando coisas boas...

Quanta gente não vai pensar em rosebud daqui a dois ou três anos, vendo o filme de Welles num cinema qualquer, longínquo, do Brasil? Vai-se lembrar como o próprio Kane lembrava, com a mesma ternura, o que lhe trazia um instante melhor dessa vida que o poeta Manuel Bandeira viu mais comprida do que a restinga da Marambaia. Rosebud, a infância; rosebud, a pureza da neve; rosebud, uma sessão de cinema com a namorada, com a família, com os amigos, e as discussões posteriores sobre o que era, o que não era rosebud na vida de Kane, na vida de qualquer pessoa.

Quanta interpretação não saiu! Algumas tão ingênuas, algumas tão tolas, outras tão sutis, tão buriladas! Rosebud foi um dos maiores testes de inteligência e de sentimento do ano cinematográfico. Rosebud ficou sendo quase uma chave gnomônica; por outro lado deu margem a mais aventuras de compreensão que o "Soneto das vogais" de Rimbaud. Uns achavam que rosebud era o trenó, tout à fait, e esses poderiam ser classificados como realistas; outros achavam que rosebud era a lembrança da neve, a memória dos tempos de menino; e esses revelaram-se imediatamente "fatalistas". Para muitos rosebud não existia, era o mistério da personagem, a sua ligação com Deus - e esses eram positivamente os "metafísicos". Outros não sabiam o que queria dizer rosebud, e para esses o reino dos céus está garantido. E nessa mesma categoria, adiantavam-se novos, de mau caráter, que não gostavam do filme todo só porque não entendiam rosebud ou achavam que rosebud era besteira, negócio de poesia, coisa sem cabimento. A estes dedicou Otávio de Faria longas páginas através de seus romances. Eles se chamam "Pedro Borges".

Contou-me alguém que até uma briga séria este "botão de rosa" célebre teria provocado. Alguns amigos estariam discutindo o sentido da palavra no filme, ponderando coisas, estabelecendo ligações. Um, mais infeliz no modo de se exprimir, a uma barbaridade qualquer dita por outro, retrucou com uma certa aspereza:

- Ora bolas! Parece mentira, você, que se diz inteligente, não ter compreendido o que quer dizer rosebud. Mas é tão simples...

O outro se abespinhou:

- Então o que é, seu sabe-tudo?
- É a mãe.
- O quê?
- É isso mesmo, é a mãe, está surdo?
- Repete se você é homem!

O outro achou esquisito o tom violento do amigo, mas repetiu. Um bofetão cantou. O rapaz ficou pálido com a brutalidade da agressão, sem compreender mas tornou a repetir, já agora irado:

- Pois é a mãe mesmo! A do cidadão Kane, e agora a sua, está ouvindo?

E embolaram. E eis como uma interpretação, justa a seu modo, criou uma inimizade mesmo depois que se aclarou o incidente. Mas agora não vá o leitor se aproveitar da deixa para ofender a mãe de quem não goste, a troco de rosebud. Eu lavo as minhas mãos. Porque se qualquer das personagens desta crônica tiver alguma semelhança com pessoa viva ou morta, será por pura coincidência...


. Vinícius de Moraes .

Texto contido nas páginas 888-889 do volume único de "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa". Publicado originalmente em 12 de outubro de 1941, no jornal "A Manhã".

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