19.8.07

Fotos - VOL. II...


. O Planeta dos Macacos (Where are you, mr. Gaylord?, 2007) .

13.8.07

Transcrição - Rogério Sganzerla...

NOÇÕES DE CINEMA MODERNO


É fácil observar uma ruptura básica no cinema de alguns anos para cá, apesar do fato ter-se dado sem que muitos diretores e críticos o percebessem. O notável surgimento de filmes com novas formas narrativas e estilísticas, o número destas produções, seu caráter polêmico e alguns talentos revolucionários vieram trazer um novo mito à cultura contemporânea: o cinema moderno.

A diferença essencial entre cinema clássico e moderno baseia-se nos seus respectivos objetos.

O cinema tradicional pretende ser ideal e absoluto. Focaliza algumas personagens numa determinada época de suas existências mas fornece um juízo extra-temporal sobre suas atitudes. Constrói uma intriga, desenvolve-a até um "clímax" e a finaliza dentro de rígidos princípios de narração e descrição. Não há dúvida, é um cinema construído, que alguns críticos chamam de "arrumadinho".

Todos os meios estão à disposição do realizador para que conte uma estória como se ela fosse a História. A câmera é onisciente; percorre todos os locais, esclarecendo dúvidas e fornecendo detalhes funcionais. Comparece sempre nos momentos certos, "humanos" e dramáticos - terminado este interesse exclusivo, corte. Há a montagem lógica, que tem por objeto relacionar fatos e ocorrências em função de uma intriga lógica, disciplinada e evidente. O crítico francês André Labarthe observa que os cineastas antigos não mediam esforços para obter a visão absoluta de uma determinada situação. Suprimia-se uma parede para colocar o aparelho nesta ou naquela posição - é o cinema tradicional que mais justifica o estúdio.

A captação do espaço e tempo se desenvolvia em termos absolutos. Invariavelmente usavam-se técnicas como o campo-contracampo, frases narrativas, progressão dramática, etc, mesmo quando as condições eram difíceis. Cada espécie de ângulo expunha obrigatoriamente uma situação: um plongée definia a fragilidade, o abatimento ou a solidão do personagem, o contra-plongée, por sua vez, pretendia o efeito inverso. Outro monstro sagrado, o close-up, perdeu inúmeras "significações" para ser sistemática e displicentemente adotado pela moderna narração.

Fala-se do cinema clássico como "arte total", citando-se Vidor, Mamoulian, Lang, entre outros. A grande fase é, sem dúvida, a década de 30, após a eclosão do sonoro.

Alguns especificam como sendo o cinema norte-americano de 1934/36: em todo caso a verdade não está longe.

Os últimos remanescentes desta escola são os acadêmicos; sua formação provém de uma síntese de princípios de cinema mudo com as descobertas de após 1930. Autant-Lara, René Clair, Clouzot, De Toth, Richard Brooks, Mark Robson, Nunnaly Johnson, Robert Wise e outros, a maioria ingleses e certamente todo o "realismo socialista" constituem uma saturação do cinema clássico. Apontam uma crise.

A partir de 1955, alguns realizadores compreenderam a desatualização da sintaxe cinematográfica tradicional e tentaram novas formas. Depois veio the spontaneous cinema norte-americano, a nouvelle vague e as diversas modalidades publicitárias. Um marco fundamental é a estréia de Robert Aldrich, "A morte num Beijo", em 1955.

Em todo caso, é evidente a requisição de uma liberdade expressiva, o desuso da retórica convencional.

No cinema tradicional a mise-en-scène pode ser definida como a construção de filmes. Realizadores como Ophuls, Renoir, Walsh, Mizoguchi, constroem filmes com admirável síntese entre forma e conteúdo, o que não acontece com os acadêmicos em geral. Aqueles são os "homens-orquestras", como diria qualquer manual cinematográfico, trabalhando conjuntamente como romancista, pintor, músico, dramaturgo, decorador etc. Explico-me: não quer dizer que façam a partitura musical ou os décors de um filme, por exemplo; trata-se da mise-en-scène que constitui uma simbiose, uma estruturação orgânica destes elementos, postos a serviço de um fim específico: o filme com visão absoluta (esta "visão", é claro, inclui audição, observação, contemplação).

Os cineastas clássicos podem ser definidos como os "architectes de l'image e du mouvement", como refere-se na contra-capa dos livros da coleção "Cinema d'Aujourd'hui".

Este ponto de vista absoluto é uma espécie de visão divina sobre os homens e o mundo; é um cinema que "vê do alto".

Grande parte do talento dos diretores baseia-se nisto - veja-se Fritz Lang, por exemplo, que vê as personagens com uma certa superioridade, uma leve indiferença - que possibilita uma crítica das mesmas e a consciência da irrefutabilidade da tragédia. Idem em Welles, outro expressionista (ainda carregado por um "neo"); Jean Cocteau declarou que em "Macbeth" a câmera observa os personagens do alto, em plongée, como que encarnando o Destino, refletindo sobre a inevitável fatalidade que os "dirige".

Deus e Destino com D maiúsculo aqui são a mesma coisa.

Já se disse que os grandes filmes (clássicos) apresentam o ponto de vista de Deus sobre o mundo. Mas, como afirmou Sartre, Deus não é artista...

Com o cinema moderno verifica-se uma passagem ao relativo. O cinema desce à altura expressionista, abandona o plongée para situar-se à altura do olho. O cinema deixa de ser Lang para ser Hawks. Esta passagem constitui a essência da ruptura cinema clássico-moderno.

Em primeiro lugar, o filme se localiza diante da realidade, muito vasta e profícua para ser abstraída e composta em doses, ou seja, obedecendo uma estrutura cartesiana. A câmera individualiza-se e toma posição frente à intriga; já não se situa em todos os lugares, posições, e até dois lugares ao mesmo tempo (montagem paralela). Alguns diretores usam a narração subjetiva (na primeira pessoa do singular: Resnais, de certa maneira Welles, Louis Malle, Irving Lerner - devido à estrutura do relato), geralmente entrecortando diálogo com monólogo interior.

Antonioni, Truffaut, Sugawa, Oshima, Yoshida, entre outros, adotam a narração objetiva (na terceira pessoa). Em experimentadores como Jean Rouch, Jean-Luc Godard o ponto de referência é o do homem com uma câmera: o mais avançado conceito de autor de cinema.

O cinema moderno parece estar baseado nas atuais noções de relatividade. Ao invés de pretender um "ângulo absoluto", impossível na vida real, busca o "melhor ângulo possível dentro de uma situação dada". Assim, já não há a idealização da realidade, mas uma integração com o real. A câmera procura captar os objetos tais como são - destituídos de qualquer aura romântica ou de "seus corações românticos". E o diálogo colabora para tanto (Godard, e o cinema americano em geral).

Verifica-se também uma busca do concreto. Grande parte dos filmes modernos passa-se em exteriores reais, localiza-se no contato com a realidade bruta. Invade objetos como automóveis, corredores, o elevador e a rua, em movimento, onde se sente as limitações da captação do real. A "câmera na mão" pode ser considerada como uma forma primitiva de relatividade cinematográfica, fornecida pela sensação de limitação e fragilidade. É justamente aquele "melhor ângulo possível" e para tanto usa recursos mais fáceis como o travelling sem trilhos (que não é absolutamente invenção do cinema moderno), maquinaria reduzida, filmagem com luz natural e sem rebatedores, som direto, pequena equipe. Há maior expansão dos movimentos - como liberdade ao ator - e o resultado é a espontaneidade de filmes como "Cléo das 5 às 7" ou "Sede de sangue". Ou algumas fitas ("Acossado", do Godard, "Shadows", de John Cassavetes, as obras de Jean Rouch e Chris Marker, entre outros) que são inventadas na hora da filmagem.

Não há situações preconcebidas, estas nascem em contato com o espaço e tempo reais, determinados, concretos e individuais. Uma parede imprevista, um gesto não ensaiado, um reflexo solto, são instantes espontâneos e fugazes que, registrados pela objetiva, tornam-se preciosos e vitais: são instantes de liberdade. É o mesmo tratamento dado aos seres e objetos em certos cine-jornais que juntamente com a televisão e o documentário, influenciaram tremendamente o cinema moderno. Estamos em pleno domínio do cinema-ensaio, gênero relativista por essência.

Nestes realizadores verifica-se uma displicência geral na montagem, o amor pela cena longa e os movimentos insinuantes, além de uma absoluta liberdade narrativa (ausência de progressão dramática, sequências longas ao lado de curtas; ritmo na imagem e não na montagem etc).

A improvisação é um processo arriscado, exige muito do diretor mas oferece possibilidades ilimitadas. Constitui justamente a valorização do instante presente e o cinema é "a arte do presente".

Sabe-se que esta mesma valorização verifica-se no documentário; os grandes cineastas da atualidade são, todos eles, documentaristas: Antonioni, Resnais, Visconti (documentaristas da alma). Godard, Losey, Hawks (documentaristas do corpo). Ou, quando adotam uma ficção, dão-lhe um tratamento que pode ser definido como uma ficção documental (Francesco Rosi - especialmente "O bandido Giuliano"; Maselli em "Os delfins", Truffaut em "Uma mulher para dois"; Agnes Varda em "Cléo das 5 às 7", etc). A maior parte dos filmes modernos possui pelo menos um tom documental, especialmente os da nova geração norte-americana. Ou, então, de crônica, como em quase todos os italianos (Antonioni, Visconti, Zurlini, Bolognini, Petri, Maselli, Fellini, Rossellini, De Sica, Damiano Damiani, Vancini, De Sanctis e outros).

A construção rígida, própria dos filmes tradicionais, encaminha o filme a um desenlace preciso; como já disse, desenvolve uma consciência extra-temporal, reflete sobre o destino futuro e passado das personagens etc. Assim, pode-se perfeitamente "prever o que vai acontecer" na estória. A valorização do presente faz com que a cena não exista em função da estrutura e do desenlance, mas em função de si mesma. Cada cena reflete e revela o presente (Antonioni, especialmente em "A aventura"; Losey, Bergman).

De maneira geral, o cinema moderno tenta desenvolver as possibilidades descritivas do cinema que é também a "arte das aparências". "As aparências enganam" - a psicologia tradicional baseia-se neste axioma, mas Godard, Antonioni e Rosi acreditam que não. Por isto, a única possibilidade de conhecimento se dá com a captação da superfície dos seres e objetos, num eterno presente - que constitui o instante privilegiado, o instante de liberdade.


. Rogério Sganzerla .

Texto contido nas páginas 13-20 da coletânea de artigos "Por um cinema sem limite". Publicado originalmente em 1965, em jornal não especificado.

31.7.07

Paying my respects - Yang, Bergman, Antonioni...


. Edward Yang (1947-2007) .



. Ingmar Bergman (1918-2007) .



. Michelangelo Antonioni (1912-2007) .

26.7.07

Notas - McG, Preminger, Stevens, Moniz Vianna...

. O mais recente filme de McG vem apenas reforçar a impressão de que a completa falta de liga entre as cenas de seus filmes, o amontoamento obsessivo e vazio de chavões sugados de outros meios – os dois “As Panteras” – ou de uma certa tradição de filmes – este recente “Somos Marshall” –, afora o esvaziamento de qualquer humanidade que pudesse trespassá-los, não constituem partes de um projeto formal contemporâneo ou qualquer coisa similar. São, isto sim, alguns dos inúmeros reflexos da gritante inaptidão cinematográfica, sem falar na completa ausência de sensibilidade estética e narrativa, de um diretor por demais superestimado. Inclusive pelos que o detestam.

. Após finalmente assistir a “Bom dia tristeza” (Bonjour tristesse, 1958), é impossível escapar da evidência cristalina de que Godard, mais que apenas o casting de Jean Seberg para “Acossado”, deve a este filme grande parte dos efeitos conseguidos em sua exploração cromática e espacial do scope em “O Desprezo”. Surpreendente também o quanto a severidade do tom fúnebre em que o filme de Preminger pouco a pouco mergulha, é de pronto assumida no filme de Godard, que desde o início apenas trata de deixá-la transbordar. Os dois filmes juntos formam um dístico incontornável sobre a morte do cinema. Mesmo para os que não acreditam nisto.

. A beleza das imagens de “Os brutos também amam” (Shane, 1953) nasce em grande parte da exatidão de George Stevens na escolha das locações, que inclusive permeiam os gestos dos personagens de um tom épico que nasce do mais mundano dos esforços físicos, como arrancar um toco de árvore do terreno de uma pequena fazenda. A trama, pouco inventiva e com personagens extremamente simplistas, não dá conta do retrato crepuscular do oeste romântico, embora esta pareça ser sua principal proposta – daí o uso da criança e de seu rito de passagem como fio condutor –, mas há um certo interesse quando o realismo duro de Stevens parece acenar para a própria impossibilidade deste oeste ter existido. Na verdade, um dos maiores interesses do filme, extremamente mal montado como é o usual em sua obra, é justamente este embate constante entre o roteiro e as imagens. Não é um grande trabalho, mas é infinitamente mais instigante que os outros filmes do diretor que tive oportunidade de ver.

. “Hitchcock pode mentir. Como pode, também, apresentar o filme como costuma apresentar seu famoso programa de televisão. A TV é a TV – o cinema, outra coisa, é o cinema, e ele é um dos que sabem disso. E The wrong man é cinema: um dos filmes mais inteligentes do artista, não importando a posição anômala que ocupa, quanto às intenções e o objetivo, na sua obra. Anômalo como Lifeboat [Um barco e nove destino] e Under Capricorn [Sob o signo de Capricórnio]. A melhor entre as anomalias – e filme tão bom quanto os melhores entre os ensaios hitchcockianos mais legítimos.” Alguns críticos só batem com o decorrer dos anos e com o cair de certos preconceitos. Antonio Moniz Vianna é um deles, e é impressionante o quanto há momentos incisivos como este em suas críticas. Anacrônico, certamente. Graças a Deus.

23.7.07

Anotações - Fred Astaire...


Qualquer olhar apressado sobre os filmes de Fred Astaire é o suficiente para confirmar tudo o que já foi dito acerca deles, desde a importância no imaginário americano de seu ciclo de filmes – de um otimismo contagiante – com Ginger Rogers na RKO, rodados em sua maioria durante o período da Depressão americana; até a óbvia, e freqüente, constatação de que ele era um dançarino fenomenal só comparável no cinema a Gene Kelly. Imerso dentro deste emaranhado de lugares-comuns é fácil deixar escapar uma análise mais detida sobre uma obra aparentemente tão leve que beira o leviano, além de desprovida de grandes arroubos visuais. Com o decorrer do tempo ela mesma acabou por ser relegada pela crítica a certo tipo de curiosidade histórica de pouca relevância frente às grandes comédias musicais da época, e se “A Roda da Fortuna” acaba por ser citada entre elas é muito menos por Astaire que por Vincente Minnelli.

Na verdade, o que faz do corpo da obra de Astaire algo sem grande paralelos na história do cinema americano é justamente a maneira como ele consegue transcender graciosamente toda esta estrutura que tende a padronizá-lo, fazendo isto justamente com o que se espera de comum nele: a dança. É como se ele próprio criasse filmes espetaculares dentro de filmes não raro ineptos. Por isto não há pudor - já o apontou Douchet - em dizer que se trata de sua obra; mesmo que seja também de outro, nunca deixará de ser irremediavelmente sua. Esta operação é realizada sem grandes fissuras, como um milagre que nasce do ordinário e mais banal, com a desenvoltura dos que podem começar a cantar e dançar em uma cena qualquer sem que isto choque de alguma forma o andamento da narrativa. É certo Astaire foi o maior dentro desta arte que pode ser definida como sendo da elegância. O ator por excelência do movimento contínuo e rigoroso, da ilusão absoluta de liberdade física. Mais ainda, Astaire faz de sua dança um tipo de filosofia corporal que se choca frontalmente contra o determinismo e acena para a possibilidade infinita que há no ser humano.

Assim se explicam os momentos de profunda beleza escondidos em filmes de diretores bastante limitados – Mark Sandrich na maioria de seus filmes com Ginger Rogers – ou claramente desconfortáveis com o gênero – George Stevens em “Ritmo Louco” (Swing Time, 1936) – chegando a suprir os próprios filmes. Assim se explica, ainda, o quanto um excelente artesão como Charles Walters – sem esquecer de Robert Alton que dirigiu os números musicais de vários de seus filmes – ou mesmo Vincente Minnelli, o maior expoente do gênero, ganham quando dispõem de Astaire em seus filmes. Tudo isto alcançado com sobriedade e uma entrega bem particular a cada um destes trabalhos - perfeccionista notório, muitas vezes repetia cenas até a exaustão, mesmo com os pés empapados em sangue -, sem precisar eclipsar o filme grosseiramente, afinal, para Astaire, o cinema sempre foi uma questão mais de classe do que de choque.

7.7.07

Transcrição - Nelson Rodrigues...


Como é antigo o passado recente! - eis a exclamação que não me farto de repetir. E, realmente, como a melindrosa de 1929 é anterior a Sarah Bernhardt. Como o Ford de bigode é mais velho do que a charrete de Ben-hur. Aí está o óbvio que ninguém enxerga. E, no entanto, qualquer memorialista tem escrúpulo de fazer a história da véspera. Meu Deus, o que aconteceu ontem ou, menos do que ontem, o que aconteceu há quinze minutos pertence tanto ao passado defunto como a primeira audição do "Danúbio azul".

Bem. Fiz este breve reparo para referir uma dura experiência que acabo de sofrer, na carne e na alma. Foi sexta-feira e, portanto, há 72 horas. Saímos os dois casais: - eu e Lúcia, Celso Bulhões da Fonseca e Teresa. Eis o nosso destino: - Bruni-Copacabana, íamos ver Terra em transe, de Glauber Rocha. Na própria tarde de sexta-feira, perguntei a um conhecido: - "Bom o filme?". E o sujeito, que é um legionário da esquerda idiota, respondeu: - "Fascista". Insisti: - "Rapaz, não perguntei se era fascista. Perguntei se era bom".

(Singular geração esta que anda por aí. Imaginem rapazes e raparigas - digamos "raparigas", como Júlio Diniz - que se fingem mais imbecis do que são. E assim desponta nas esquerdas brasileiras um tipo único, inédito, empolgante, de cretino. É o débil mental por simples pose ideológica; e o sujeito se põe a babar na gravata, achando que só assim serve ao socialismo.)

Diga-se de passagem que tivemos, eu e o desafeto de Terra em transe, uma discussão truculenta. Disse-lhe que, para meu gosto, tanto fazia filme comunista, fascista, espírita, budista, macumbeiro ou jacobino. Eu queria, apenas, com minha feroz simplicidade, que fosse um bom filme e nada mais. O bate-boca não chegou a nenhuma conclusão inteligente. Por fim, perdi a paciência e fiz-lhe o apelo: - "Não me cumprimente mais. É favor. Me negue o cumprimento".

Largo o falso idiota (realmente, é um rapaz de talento), apanho um táxi e passo na casa do Hélio Pellegrino. Lá encontro o Gilberto Santeiro, jovem cineasta patrício. O cinema brasileiro tem uma meia dúzia (não mais) de rapazes prodigiosos. São possessos de sua arte. Potencializados de paixão, chegam a meter medo. E o nosso Gilberto Santeiro é um dos que matam e morrem por cinema. Pergunto-lhes: - "Que tal Terra em transe?". Deu-me a resposta fanática: - "Genial!".

A fé sempre me comove, mesmo que o santo ou o deus não a mereça. Duas mãos postas e mais a luz de um círio fazem uma cena irresistível. O Gilberto Santeiro não tinha a vela, mas estava quase de mãos postas. E assim, crispado de uma fé autêntica, ele me tocou. Levantei-me: - "Gilberto, vou ver o filme e depois te falo".

Confesso que, na casa do Hélio Pellegrino, comecei a gostar de Terra em transe. Mais tarde, entrando no Bruni-Copacabana, não tinha mais dúvida: - "Gostei", eis o que pensava. E já me via dizendo ao Gilberto Santeiro: - "Genial". Na porta do cinema, paro um momento. Outro rapaz, flor das esquerdas, veio me dizer: - "O elenco não gosta do filme. Está indignado. Acha o filme fascista". O sujeito afirmou-me, quase sob palavra de honra, que Paulo Autran, Danuza, e outros, e outros, estrebuchavam de furor impotente e sagrado. Não sei se é verdade. Passo adiante o que me foi dito.

A indignação de um elenco não é um fenômeno novo para mim. A maioria dos meus intérpretes representam os meus textos com o maior desprazer e humilhação. Mas, como ia dizendo: - entrei no cinema e vi o filme. Entre parênteses, acho comovente a figura de Glauber Rocha por muitos motivos, inclusive este: - é um neurótico. Está a um passo da loucura; e essa proximidade me parece vital para a obra de arte. Não me venham falar de Goethe, que era um suicida e o mais lúgubre dos suicidas: - o fracassado. E nós sabemos que o brasileiro não tem nenhum motivo para ser neurótico. Cada um de nós há de morrer agarrado à sua angústia.

Fiz, durante Terra em transe, o que fez, tempos atrás, Cyro dos Anjos. Ao lado de Carlos Castelo Branco, o autor de Abdias assistia à minha peça Dorotéia, no já demolido Teatro Phoenix. E o tempo todo Cyro cochichava para o Castelinho: - "Que mistificação! Que mistificação!". Sexta-feira, sessão das dez a meia-noite, eu repetia: - "Que mistificação! Que mistificação!". E o Celso Bulhões da Fonseca ouvia e calava. Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em transe.

Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade, mansa, translúcida, eterna: - o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim, eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar na gravata.

Saio do cinema e, antes de entrar no automóvel do Celso faço este resumo crítico: - "Terra em transe é um texto chinês de cabeça para baixo". A platéia não entendera nada, mas, coisa curiosa: - suportara as duas horas com uma paciência ou, mais do que isso, com um respeito e um silêncio totais. Era como se estivéssemos, todos, numa igreja. E se por lá aparecesse uma mosca, seu vôo faria um ruído insuportável (súbito, descubro que não há moscas na missa). Domingo encontrei-me, no Estádio Mário Filho, com o Luís Carlos Barreto. Desfechei-lhe a piada: - "Um texto chinês de cabeça para baixo". Cuidei que ele ia revidar, irado. Pelo contrário: - achou uma graça infinita. Soube, posteriormente, que anda por toda parte, fazendo uma promoção feroz da graça cruel.

E, no entanto, Terra em transe não morrera para mim. Da madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. De repente, no telefone, com o Hélio Pellegrino, houve o berro simultâneo: - "Genial!". Estava certo o Gilberto Santeiro, quase um menino. Sim, pálido de certeza como um fanático. Nós estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda.


. Nelson Rodrigues .

Texto contido nas páginas 228-230 da coletânea de crônicas "A menina sem estrela - Memórias". Publicado originalmente em 1967, no jornal "Correio da Manhã".

26.6.07

Traduções - Douchet...

Alain Resnais


Hiroshima, meu amor


Pode-se imaginar Vélasquez alcançando a duras penas seu "Las Meninas" e Picasso de pronto já bordando por cima suas espantosas variações? Certamente que não. Ora, é um pouco o que acaba de se produzir. Com Hiroshima, meu amor, Alain Resnais tira o cinema do século XVII para o mergulhar, sem transição, em pleno coração do século XX.

O cinema, em nossa época de formalismo rei, permanecia o último refúgio do classicismo. Não por vocação ou por privilégio especial. Mas é o apropriado para uma arte virgem, tendo atingido a maturidade de sua técnica, se desabrochar na plenitude de seu modo de expressão, esgotar todo campo possível de sua forma e, pelo feliz casamento entre a forma e o fundo, oferecer-se o luxo de - se fixar como objetivo - agradar imediatamente. A era de ouro clássica é este momento privilegiado onde uma arte cobre a extensão completa de suas virtualidades, onde cada um de seus fragmentos se cimenta naturalmente em um todo.

O modernismo começa a partir do instante em que os artistas se vêem constrangidos a exprimir novas maneiras de pensar, descobrir minas que a era de ouro clássica se contentava em guardar sem explorar. Isto é dizer, para continuar no terreno da pintura, que o impressionismo, depois o cubismo, depois o abstrato, se encontram já implicados na obra de Titien ou de Vélasquez, mas não o inverso. Assiste-se, então, a uma série de fragmentações mais e mais encadeadas, cada escola moderna se tornando clássica para a seguinte. Segundo esta tese, o drama do artista moderno consiste em tentar reencontrar a plenitude e a totalidade de sua arte partindo apenas de fragmentos. Seu objetivo não é mais então o de agradar, mas de alcançar isto, custe o que custar.

O filme começa com a imagem de dois seres abraçados e nós iremos assistir à sua dolorosa separação, à dissociação progressiva destes dois seres, uma francesa e um japonês. Ela, Emmanuelle Riva, porque não tem nome no filme, veio a Hiroshima como atriz contratada para trabalhar em um filme internacional sobre a paz. Ela encontrou este japonês e o que devia ser apenas passageiro torna-se amor violento. Nós somos convidados a assistir à tomada de consciência deste amor.

Ora, este aí desperta em Emmanuelle Riva a lembrança de um outro amor, também violento, que em Nevers ela experimentara, durante a guerra, por um alemão.

Pouco a pouco, ela evoca a história deste amor: a morte de seu amante logo antes da Liberação, sua própria humilhação em praça pública, seu claustro na casa de seus pais, aprisionada um inverno inteiro no porão ou em seu quarto. E suas lembranças lhe são arrancadas na ordem afetiva, as mais penosas só vindo por último. Com Hiroshima, meu amor, Alain Resnais coloca em termos de cinema as preocupações estéticas modernas das outras artes. Ele rompe com a moldura do relato narrativo e introduz a técnica romanesca cara à Faulkner: o passado dos personagens ressurge em lufadas na superfície do presente, e também assim, envenena este presente. Por outro lado, introduzindo o cinema dentro do cinema, Resnais se une aos trabalhos literários mais recentes de um Klossowsky ou de um Borges: ele nos oferece a reflexão num segundo grau, ele nos convida ao jogo do espelho. (Se nós quisermos confirmar a tese inicial pré-citada, poder-se-ia dizer que Cervantes, pela sua maneira de conceber o segundo tomo de Don Quixote já esboçava este jogo de espelho.) Da mesma forma, um musicista poderia se deliciar encontrando no ritmo e na montagem dos planos de Hiroshima, meu amor, a influência de Stravinsky. Enfim, pictoricamente este filme evoca o cubismo, Picasso e Braque.

Moderno, Hiroshima, meu amor o é ainda pelo seu tema. Tragédia da impossibilidade da união e da plenitude de si. Trata-se da vitória do despedaçamento, da dissociação, do fragmentário. É impossível ser totalmente um, pois nós vivemos no instante e cada instante nos condena ao nascimento, mas também à morte de uma parte de nós mesmos. Este é talvez o símbolo profundo da primeira imagem do filme. Não se vê nada além de dois corpos abraçados, indistintos um do outro e cobertos pouco a pouco por uma chuva de cinzas. Esta cinza, podemos imaginar como aquela mesmo da bomba atômica, quer dizer, como aquela dos vestígios da guerra que ainda recaem no presente e o contaminam. Mas eu prefiro ver aí o símbolo desta dialética do instante: no mesmo momento em que estes seres "se incendeiam um pelo outro" (como é dito em certo momento no texto), a cinza deste fogo, a cinza do esquecimento já os recobre.


A partir desta imagem-chave, o filme se organiza seguindo a figura geométrica de um cone cuja base será a distância que separa o japonês e a francesa e que se traduz de uma forma puramente espacial pela corrida de um em direção ao outro através de Hiroshima. Os fragmentos do passado de Emmanuelle Riva formaram um bloco cada vez mais compacto que separa irresistivelmente os dois amantes. Revivendo este passado, e o imiscuindo no presente, Emmanuelle Riva toma consciência de que ele não é mais que uma lembrança, que ele está morto nela, que ele está esquecido. Assim sendo, este amor atual entre ela e o japonês é também destinado ao esquecimento, à morte, ele é irremediavelmente condenado. "Eu sei que eu te esquecerei, eu sinto que eu já te esqueço" grita ela ao fim do filme para o japonês.

Estando seu filme baseado na dialética, Resnais se obrigaria em exprimi-la na forma, o duplo movimento de negação e afirmação. Ora, seu sucesso é total. Ele o atinge tão bem em seus movimentos de aparelho quanto em sua montagem. Assim este marcante travelling de recuo, que percorre Hiroshima durante o comentário de Emmanuelle Riva, nos faz compreender que ele corresponde ao tempo mesmo do ato de amor. Pela velocidade deste travelling, nós revivemos a sensação de embriaguez e de comunhão que toma nossa heroína e, ao mesmo tempo, a imagem da distância percorrida desperta em nosso espírito a idéia de fuga que a arrebata então.

A montagem de Resnais, mesmo podendo evocar as teorias musicais de Stravinsky, prolonga sobretudo as teorias de Eisenstein sobre montagem atrativa. Nada aqui de muito impressionante, já que Resnais como Eisenstein baseiam suas estéticas na dialética marxista. Porém, Resnais insiste mais sobre seu duplo movimento simultâneo e contrário. Por exemplo, assim que Emmanuelle Riva vê a mão do japonês menear-se enquanto ele dorme, esta imagem faz surgir com força a imagem da agonia do alemão, mas mesmo sendo uma imagem que nasce com incômodo, é de pronto rejeitada.

Ainda dialética esta proposta poética de Resnais acerca da doçura terrível, que se encontra incluída no próprio título. Hiroshima, meu amor, dois termos que formam algo como uma mistura destoante. Como em Picasso (não esqueçamos seu curta-metragem sobre Guernica), Resnais adora mostrar simultaneamente a face do terrível com seu perfil de doçura. Portanto, estas imagens horríveis de feridos radiativos acompanhadas por um comentário lírico e bucólico sobre a primavera e o renascimento das flores em Hiroshima.

Hiroshima, meu amor é um filme dez anos à frente. Ele desencoraja toda crítica. Qual será sua influência sobre o cinema? É o fim do classicismo cinematográfico? Ou, ao contrário, pela própria perfeição de seu aspecto inovador, ele condena antecipadamente toda veleidade em perseguir este caminho? Tantas questões que só o tempo poderá responder.


JEAN DOUCHET
(Arts nº 727, junho de 1959)

Texto contido nas páginas 278-282 do volume 78 da coleção Petite anthologie des Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". Tradução feita por José Roberto Rocha.






O ano passado em Marienbad


Veneza 61 (...) foi dominado muito claramente por O ano passado em Marienbad, e é justo que o filme de Resnais tenha obtido o grande prêmio. (...) Se por um lado eu reconheço a perfeição do trabalho de Resnais, por outro eu confesso ser, cada vez mais, violentamente contra o princípio que preside sua concepção. Eu não acredito na penetração da câmera no mundo mental. Aí está a fonte de todas as arbitrariedades. Nada é mais inquietante que ver desenrolar-se diante de si a representação da consciência vivida, interpretada e entregue segundo uma lógica objetiva. Há aí uma contradição interna entre a forma do filme que se apresenta como um jogo puramente espirituoso, e seu objetivo que é de explorar as regiões misteriosas do imaginário. Ora, eu acredito que é principalmente no cinema que se deve aplicar este programa que Baudelaire assinava na pintura: trazer a tona o que há dentro pelo que há fora. Estimo que um Mizoguchi ou um Lang tenham indo mais longe no imaginário que todos os Maffenbad do mundo, e suas obras permanecem abertas, ao passo que o filme de Resnais se fecha e limita-se a si mesmo.

No fundo, Marienbad não é nada mais que uma versão moderna, talentosa, inteligente, de uma extrema beleza, e tudo mais o que se queira, de Caligari. De forma similar, e porque nos é necessário penetrar no mundo mental, a deformação das aparências é exigida. Em Marienbad, esta deformação toma corpo, certamente, mais sobre o tempo que sobre o espaço, mas isto não impede que se trate de um cinema inteiramente fundado sobre a deformação, os procedimentos e as trucagens. O "Tout-Cinéma 1925" parece ter se encontrado voluntariamente neste hotel frio, lúgubre, sinistro, por onde circulam fantasmas: o expressionismo caligaresco margeia um surrealismo que ousa, ele, na falta dos personagens, dizer seu nome, e a montagem por atração à la Eisenstein, que faz de cada plano um bloco estático, corteja o cinema puro onde os movimentos de aparelho são desprovidos de qualquer função que não aquela da sensação que procuram. Só falta o cinema-olho, abandonado para Jean Rouch. Por que milagre, dito isto, os erros do passado se tornariam hoje virtude única? A via de Resnais é aquela dos "grandes à margem" do cinema: Eisenstein ou Welles. Assim que ela atinge tal nível, ela é em si admirável. Mas em si somente. O pior dos cineastas, se inspirado nos princípios cinematográficos de Lang, Hawks, Walsh, etc., fará um mau filme, mas visível. Ao contrário, um filme influenciado por Resnais tem toda a chance de ser invisível e insuportável. Quantos filhos de Hiroshima, idiotas e monstruosos, nós já não temos a lamentar? No entanto, estes serão anjos de beleza em comparação com os filhos de Marienbad.


JEAN DOUCHET
(Trecho da cobertura do festival de Veneza de 1961)

Texto contido nas páginas 198-200 do volume 78 da coleção Petite anthologie des Cahiers du cinéma: Jean Douchet "L'Art d'aimer". Tradução feita por José Roberto Rocha.

Link e citação - Costa...





Há muito tempo que eu adoro filmar em interiores. O vídeo permite certas coisas e não outras. É necessário perder tempo, falamos antes das cenas, falamos por dias e mais dias. Em um momento se filma, e isso faz parte da mesma coisa, não há mais choque, o movimento é o mesmo. É muito pensado, é uma maneira de criar uma memória, de fazer com que o texto esteja tão fortemente dentro destes quartos que ele possa ser dito todas as noites, todos os meses, todos os anos, cada dia talvez um pouco melhor. Nós melhoramos as coisas, os atores selecionam, eles eliminam o que é acessório, a cena torna-se mais forte.

Isto vem do filme sobre os Straub? Eu não sei, isto vem de lá, mas também de coisas anteriores. Aqui, eu estava mais entusiasmado plasticamente, eu ousei coisas que eu não podia fazer com "Vanda". Havia um quarto e isto era o suficiente. É inclusive um pouco miraculoso que o filme se segure desta forma. "Vanda" foi feito graças ao desejo de que fosse feito algo assim, de que era necessário filmar aquilo. Um desejo que não era unicamente meu, mas também de Vanda, de sua irmã, e dos outros. Para este filme, houve um outro tipo de fé, se é que se pode falar assim. A crença de que é possível contar ainda uma vez no cinema coisas como se fazia outrora. A idéia de um filme que vem de um certo realismo, mas igualmente da série B, o que é um pouco contraditório: Straub e Tourner, o cinema de horror e a Nouvelle Vague. Os novos apartamentos me parecem muito ligados a "Numéro zéro" de Eustache, por exemplo. "Juventude em Marcha" possui, sem dúvida, muito a ver com o fato de que eu amo este filme e com o que eu retive dos Straub: uma certa maneira, um certo desejo de fazer as coisas.


Trecho de entrevista contida na revista "Cahiers du Cinema" nº 619, lançada em Janeiro de 2007. Tradução feita por José Roberto Rocha.

21.6.07

Notas - Romero, "Pedra do reino", etc...

. Impressionante notar uma certa condescendência com diluições e deturpações da obra do George Romero - "Extermínio", "Extermínio 2" e, por mais que esboce algum tipo de saída menos imediata, "Madrugada dos Mortos" -, especialmente quando ela parte do nicho pretensamente mais aficcionado pela obra do diretor. Assistir a estes três filmes só ajuda a esclarecer o quanto as consequências estético-políticas-morais de "Dia dos Mortos", "The Crazies" e "Dawn of the Dead" - respectivamente os trabalhos a que mais devem -, pra não falar de toda a obra de Romero, são incrivelmente subestimadas e, por fim, reduzidas através de um processo de fetichização que devora a si mesmo e que se inicia e ecoa justamente entre os fãs mais ardorosos.

. Eu juro que tentei assistir a "A Pedra do Reino", mas não passei de meio episódio, portanto não sou a pessoa mais aconselhável a se questionar sobre a série. No entanto, fica a impressão da já usual esvaziação da cultura sertaneja - mais precisamente paraibana, neste caso - em prol de uma estilização que a faça perder o caráter materialista tão próprio dela, substituído aqui por um onirismo de boutique, que se diferencia um pouco do exotismo cômico usual mas é um processo tão limitado quanto. No mais, também lembrei de um comentário de um amigo meu que sequer gosta tanto assim de cinema: por que diabos a câmera parece estar amarrada a um touro mecânico?

. Como já deixei claro no reinício de trabalho deste blog, vou tentar manter algo próximo de uma linha editorial com a repetição sistemática de alguns tipos de posts - traduções, filmografias, textos escritos em conjunto - entre as mongolices habituais. O texto de Vinicius de Moraes postado abaixo corresponde ao primeiro de vários textos da crítica brasileira que pretendo transcrever aqui no blog. As escolhas de tais textos serão pautadas, às vezes, mais na curiosidade que acredito que certos críticos despertam na cinefilia brasileira, mesmo que às vezes seja mais por fatores externos a própria influência e relevância de seu trabalho - sendo este o caso do próprio Vinicius de Moraes. Quanto às traduções, como exigem um esforço incomparavelmente maior, só são dedicadas a textos pelos quais eu preze imensamente. Assim acho que supro a ausência do rodapé informativo que deveria ter acompanhado o texto de Vinicius.

19.6.07

Fotos - VOL. I...

. Rocco e seus Irmãos (My brother burns the boiga, 2006) .

18.6.07

Transcrição - Vinicius de Moraes...


ROSEBUD


Citizen Kane está acabando seus dias na cidade. Agora vão começar as mutilações nos cinemas de bairro, os desgastes do celulóide, e o filme logo entrará no seu processo de caquexia; daqui a seis ou sete meses, passando de trem lá pelo Engenho de Dentro, veremos com saudade o grande cartaz, com Welles agigantado, na sua camisa branca de punhos fechados, num muro de um pequeno cinema caiado de amarelo.

Destino engraçado, o dos filmes. Não ficam na estante, como os livros; nem na parede, como os quadros; nem nos discos, como a música. Ficam na lembrança, apenas, Será por isso, talvez, que nos deixam, alguns, tanta saudade. É que marcam melhor certas fases da vida, certos sentimentos, certas lutas; e se os revemos assim, no muro de um cineminha de subúrbio, eles nos são restituídos de um modo particularmente intenso. Deu-se tantas vezes isso comigo. Nunca me pude esquecer de um cartaz velho da Dama das camélias, visto, uma madrugada, numa cidadezinha de Minas. Eu estava no trem e não foi senão um momento. Mas deu para me emocionar o resto da viagem e me perturbar umas férias inteiras, lembrando coisas boas...

Quanta gente não vai pensar em rosebud daqui a dois ou três anos, vendo o filme de Welles num cinema qualquer, longínquo, do Brasil? Vai-se lembrar como o próprio Kane lembrava, com a mesma ternura, o que lhe trazia um instante melhor dessa vida que o poeta Manuel Bandeira viu mais comprida do que a restinga da Marambaia. Rosebud, a infância; rosebud, a pureza da neve; rosebud, uma sessão de cinema com a namorada, com a família, com os amigos, e as discussões posteriores sobre o que era, o que não era rosebud na vida de Kane, na vida de qualquer pessoa.

Quanta interpretação não saiu! Algumas tão ingênuas, algumas tão tolas, outras tão sutis, tão buriladas! Rosebud foi um dos maiores testes de inteligência e de sentimento do ano cinematográfico. Rosebud ficou sendo quase uma chave gnomônica; por outro lado deu margem a mais aventuras de compreensão que o "Soneto das vogais" de Rimbaud. Uns achavam que rosebud era o trenó, tout à fait, e esses poderiam ser classificados como realistas; outros achavam que rosebud era a lembrança da neve, a memória dos tempos de menino; e esses revelaram-se imediatamente "fatalistas". Para muitos rosebud não existia, era o mistério da personagem, a sua ligação com Deus - e esses eram positivamente os "metafísicos". Outros não sabiam o que queria dizer rosebud, e para esses o reino dos céus está garantido. E nessa mesma categoria, adiantavam-se novos, de mau caráter, que não gostavam do filme todo só porque não entendiam rosebud ou achavam que rosebud era besteira, negócio de poesia, coisa sem cabimento. A estes dedicou Otávio de Faria longas páginas através de seus romances. Eles se chamam "Pedro Borges".

Contou-me alguém que até uma briga séria este "botão de rosa" célebre teria provocado. Alguns amigos estariam discutindo o sentido da palavra no filme, ponderando coisas, estabelecendo ligações. Um, mais infeliz no modo de se exprimir, a uma barbaridade qualquer dita por outro, retrucou com uma certa aspereza:

- Ora bolas! Parece mentira, você, que se diz inteligente, não ter compreendido o que quer dizer rosebud. Mas é tão simples...

O outro se abespinhou:

- Então o que é, seu sabe-tudo?
- É a mãe.
- O quê?
- É isso mesmo, é a mãe, está surdo?
- Repete se você é homem!

O outro achou esquisito o tom violento do amigo, mas repetiu. Um bofetão cantou. O rapaz ficou pálido com a brutalidade da agressão, sem compreender mas tornou a repetir, já agora irado:

- Pois é a mãe mesmo! A do cidadão Kane, e agora a sua, está ouvindo?

E embolaram. E eis como uma interpretação, justa a seu modo, criou uma inimizade mesmo depois que se aclarou o incidente. Mas agora não vá o leitor se aproveitar da deixa para ofender a mãe de quem não goste, a troco de rosebud. Eu lavo as minhas mãos. Porque se qualquer das personagens desta crônica tiver alguma semelhança com pessoa viva ou morta, será por pura coincidência...


. Vinícius de Moraes .

Texto contido nas páginas 888-889 do volume único de "Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa". Publicado originalmente em 12 de outubro de 1941, no jornal "A Manhã".

16.6.07

Anotações - Halloween...


I met him, fifteen years ago. I was told there was nothing left. No reason, no conscience, no understanding; even the most rudimentary sense of life or death, good or evil, right or wrong. I met this six-year-old child, with this blank, pale, emotionless face and, the blackest eyes... the devil's eyes. I spent eight years trying to reach him, and then another seven trying to keep him locked up because I realized what was living behind that boy's eyes was purely and simply... evil.

Durante todo o desenrolar de “Halloween” (1978) há uma irreversível fixação pela ausência do rosto de Michael Myers. Esta vontade de despersonalização passa, claro, pelo roteiro, mas só garante toda sua força simbólica a partir do momento em que John Carpenter faz dela a pedra angular de seu projeto estético. As intervenções de Dr. Sam Loomis (Donald Pleasance) são bastante relevantes neste sentido, mas funcionam antes de tudo como eco de toda uma aura construída com esmero – deslocamentos de câmera, enquadramentos parciais, uso do fora de quadro, exploração da profundidade de campo – ao redor de um corpo que parece ser o sintoma de um mal muito mais geral que particular. A própria máscara de Myers é desprovida de qualquer traço, ostentando um vazio sufocante em sua inexpressividade e na única ocasião em que ela é retirada tal sensação é apenas reforçada: antes de continuar com a matança, ele tem que parar e a recolocar prontamente.


A primeira cena do filme revela toda a engenhosidade de Carpenter em levar adiante este processo, além de expandir seus significados: “Halloween” se inicia com um longo plano-sequência realizado em câmera subjetiva que faz com que o espectador compartilhe a visão de uma criança que mata, a facadas, sua irmã. Assim, o rosto do assassino, o próprio Myers, é furtado; mais ainda, toma a forma daquele do espectador. Ao final da seqüência, há um corte e a câmera finalmente exibe a criança que segura uma faca ensangüentada enquanto é abordada pelos pais. O mais impressionante nesta cena é exatamente o olhar desta criança, tão vazio quanto o da máscara que ela utilizará anos mais tarde para continuar o que ali começara. Esse olhar se direciona, enfim, para o próprio espectador que acabou de, junto a ele, cometer um assassinato. A câmera começa então um movimento de recuo que funciona não só como uma despedida daquele rosto, que agora passou a ser indiscriminadamente o de todos; mas também para revelar uma casa tipicamente americana localizada em uma vizinhança idem – ao menos, na forma pura e desinfetada como ambas se encontram incrustadas no imaginário popular – que será justamente o cenário do restante do filme. É assim, com um movimento de câmera, que o mal representado por Myers transcende sua impessoalidade e passa a ser atrelado ao mal-estar de toda uma sociedade que tem como mola propulsora exatamente expurgá-lo, mesmo que apenas superficialmente. A simetria das casas, dos gramados, e mesmo das situações em uma cidade como Haddonfield, Illinois, parecem incompatíveis com qualquer perturbação, limpas e isentas de qualquer pecado. Myers, e Carpenter, vêm para ressignificar todo este itinerário visual. E ambos vão até as últimas conseqüências para fazê-lo.

5.6.07

Filmografia - John Carpenter...

. Anos 60 .


1962 - Revenge of the Colossal Beasts
1963 - Terror from Space
1969 - Gorgo Versus Godzilla
1969 - Gorgon, the Space Monster
1969 - Warrior and the demon
1969 - Sorceror from Outer Space


. Anos 70 .


1973 - Dark star (Dark star)
DISPONÍVEL EXCLUSIVAMENTE EM VHS
Distribuidora: Pole-Tel
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.85 : 1]
Duração: 83 minutos



1976 - Assalto a 13º DP (Assault on Precint 13)
Distribuidora: VTO Continental
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 91 minutos



1978 - Halloween, a noite do terror (John Carpenter's Halloween)
Distribuidora: VTO Continental
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 91 minutos


1978 - Alguém me vigia (Someone's watching me!) [TV]
DISPONÍVEL EXCLUSIVAMENTE EM VHS
Distribuidora: Warner Home Video
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [ORIGINAL]
Duração: 98 minutos


1979 - Elvis [TV]


. Anos 80 .



1980 - A bruma assassina (John Carpenter's The Fog)
Distribuidora: Universal Home Video
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 86 minutos



1981 - Fuga de Nova York (John Carpenter's Escape from New York)
Distribuidora: Universal Home Video
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 94 minutos



1982 - O enigma do outro mundo (John Carpenter's The Thing)
Distribuidora: Universal Home Video
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 108 minutos



1983 - Christine, o carro assassino (John Carpenter's Christine)
Distribuidora: Sony Pictures
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 109 minutos


1984 - Starman, o homem das estrelas (John Carpenter's Starman)
DISPONÍVEL EXCLUSIVAMENTE EM VHS
Distribuidora: L.K.-Tel/Columbia Home Video
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 2.20:1]
Duração: 115 minutos



1986 - Os aventureiros do bairro proibido (John Carpenter's Big Trouble in Little China)
Distribuidora: Universal Home Video
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 100 minutos



1987 - O príncipe das sombras (John Carpenter's Prince of Darkness)
Distribuidora: Universal Home Video
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 98 minutos


1988 - Eles vivem (John Carpenter's They Live)
DISPONÍVEL EXCLUSIVAMENTE EM VHS
Distribuidora: L.K.-Tel/20-20 Vision
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 2.35:1]
Duração: 93 minutos


. Anos 90 .


1992 - Memórias de um homem invisível (Memoirs of a invisible man)
DISPONÍVEL EXCLUSIVAMENTE EM VHS
Distribuidora: Warner Home Video
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 2.35:1]
Duração: 99 minutos



1993 - Cabelo (Hair) e O Posto de Gasolina (The Gas Station) segmentos de Trilogia do Terror (Body Bags) [TV]
Distribuidora: WorksDVD
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [ORIGINAL]
Duração: 95 minutos


1995 - À beira da loucura (John Carpenter's In the Mouth of Madness)
DISPONÍVEL EXCLUSIVAMENTE EM VHS
Distribuidora: PlayArte
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 2.35:1]
Duração: 95 minutos



1995 - A cidade dos amaldiçoados (John Carpenter's Village of the Damned)
Distribuidora: Universal Home Video
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 98 minutos



1996 - Fuga de Los Angeles (John Carpenter's Escape from L.A.)
Distribuidora: Paramount
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 100 minutos



1998 - Vampiros de John Carpenter (John Carpenter's Vampires)
Distribuidora: Sony Pictures
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 108 minutos


. Anos 00 .



2001 - Fantasmas de Marte (John Carpenter's Ghosts of Mars)
Distribuidora: Sony Pictures
Formato de tela: Widescreen 2.35:1 [ORIGINAL]
Duração: 98 minutos



2005 - Pesadelo Mortal (John Carpenter’s Cigarette Burns) [TV]
Distribuidora: Paris Filmes
Formato de tela: Widescreen 1.78:1 [ORIGINAL]
Duração: 59 minutos


2006 - Pro-Life [TV]


P.S.: Reitero aqui o objetivo destas filmografias em constituir uma espécie de banco de dados no qual os interessados possam se basear ao entrar em contato com a obra dos diretores em questão. Assim, estão listados os filmes disponíveis em DVD no mercado brasileiro e suas respectivas características, sempre buscando destacar a edição que acredito ser mais aconselhável para o espectador no caso de multiplicidade de versões, sempre levando em consideração a qualidade do som e da imagem, além da fidelidade ao formato e duração originais. Quando não houver disponibilidade do filme em DVD, como no caso de vários filmes de John Carpenter, serão apontados aqueles que possuam versões lançadas em VHS no Brasil, com o máximo de detalhes possíveis de se coletar. Aproveito para insistir na participação dos leitores que observem algum erro ou omissão, apontando-os na caixa de comentários e possibilitando maior acuidade às listagens. No caso de John Carpenter, peço ajuda para descobrir as distribuidoras das versões que chegaram exclusivamente em VHS no Brasil.

31.5.07

Tradução - Saada...



Apocalypse Now
(Eles Vivem de John Carpenter)
por Nicolas Saada


O filme se abre num clima de errância que caracteriza o cinema de Carpenter e sua filiação ao western e aos seus heróis solitários. O herói é John Nada (interpretado por Rodney Piper, ex-lutador) que chega, bolsa nas costas, a Los Angeles para encontrar um emprego. Nada, sem abrigo nem trabalho, é recebido por uma pequena comunidade de desempregados e vagabundos, localizada próxima a uma igreja, onde entrará em contato com resistentes que lutam impetuosamente contra invasores misteriosos que controlam a população. John Nada é, evidentemente, o próprio John Carpenter que, desde seu grande fracasso comercial, “Aventureiros do Bairro Proibido”, voltou à produção B após seu purgatório em diferentes majors hollywoodianas. É assim, com nada, que Carpenter recomeça. Se é possível arriscar esta analogia, é porque Carpenter seguiu um trajeto (produção B-televisão-majors-produção B) comparável ao de seu personagem em “Eles Vivem”.

Em 1982, Carpenter declarou a Cahiers du Cinéma (nº 339), a propósito de seus primeiros passos com as majors: “Uma parte do charme de Assalto a 13ª DP ou de Halloween devia-se ao fato de que não havia dinheiro suficiente para mostrar as coisas. Ao contrário, hoje me dão dinheiro para mostrá-las, então é necessário fazê-lo”.

Mostrar: o próprio tema de “Eles Vivem” (e a função de seu herói); certamente um tema cinematográfico, mas também, para Carpenter, uma preocupação moral que o aproxima de Fritz Lang. “Eles Vivem” ilustra, na verdade, o velho adágio languiano segundo o qual a aparência não é a realidade, o visível não é a verdade. Provocação de Carpenter ao espectador que não consegue mais fazer a triagem das imagens que lhe são enviadas cotidianamente. Nada é ao início bastante ingênuo, crédulo (como poderia ter sido Carpenter no início dos anos 80 antes de seu fracasso nas majors): “Eu acredito na América, eu estou dentro do sistema”, declara ao início do filme. Depois, graças aos óculos escuros fabricados pela resistência (a produção B), espécies de “decodificadores portáteis”, Nada terá a prova de que não se pode confiar no sistema: este que rege a América de hoje é nada mais que o fruto de um vasto complô fomentado por extraterrestres (auxiliados por humanos sem escrúpulos) que embrutecem a população lhes transmitindo mensagens subliminares primárias (“não pensem”, “não reflitam”, “submetam-se”, “consumam”, “reproduzam-se”, “o dinheiro é seu Deus”). Este horror da realidade é mostrado bastante curiosamente através de imagens em preto e branco, que revelam esta visão decodificada do mundo. Carpenter poderia ter recorrido a outros estratagemas visuais: na verdade, este preto e branco pertence a um cinema de ontem (Hawks, citado por Carpenter como um pai em sua cinefilia) que joga nova luz sobre a face absolutamente inumana da América deste fim de anos 80. A fonte de emissão destas mensagens é naturalmente a televisão e seus programas (outro câncer do cinema americano) que a resistência tenta sabotar, em vão, através de transmissões clandestinas: John Nada e seu colega negro Frank vão destruir, fuzis às mãos, a estação televisiva. Assim, “Eles Vivem” é também a história de uma mini-insurreição que se pode interpretar ao mesmo tempo como política e, em outra medida, como de cinefilia.

Esta gravidade da proposta de Carpenter nunca é, felizmente, explicitada verbalmente no filme. Em total adequação com seu tema, Carpenter prefere mostrar, através de longas seqüências quase mudas, a extensão do mal ao criar um sentimento de inquietude e agonia constante, arte na qual ele se tornou mestre (assim como na utilização da trilha, tão opressora quanto possível). O resultado de “Eles Vivem” é deslumbrante, notadamente em seu controle do scope, formato ingrato que Carpenter emprega para isolar os personagens alienando-os no quadro, acentuando este efeito ao fimá-los em espaços fechados, com perspectivas de profundidade limitada (ruelas, corredores, becos).

Quanto ao aspecto “guéguerre” que alguns censuram no filme (a luta a mão armada entre os resistentes e os invasores), ele não faz com que Carpenter caia nas armadilhas do filme de gênero (filme de ação). Todas estas batalhas são dominadas por uma distância plástica que as transforma em verdadeiros ballets, ritmados por uma montagem, em certos instantes, digna do melhor cinema soviético: um insert, magnífico, dos canos das metralhadoras marca a maioria destas seqüências. A cena pivô do filme, uma briga de mais de dez minutos entre John Nada e seu colega Frank (que ele obriga a usar os famosos óculos) ilustra dois princípios hitchcock-hawksianos. O primeiro, hitchcockiano, é que tudo deve ser utilizado para as necessidades de uma cena (como o avião de “Intriga Internacional” que fumiga Cary Grant). O intérprete de Nada, Rodney Piper, é um ex-lutador: e nesta lógica ele deve, a um momento ou outro, brigar. O segundo, herdado das brigas iniciáticas dos filmes de Hawks ou Ford, é menos uma homenagem que uma necessidade: trata-se, para Frank, o negro, de sofrer a dor a fim de melhor ver. Diante da papa em que se tornou o cinema comercial americano, este mal é necessário: já o era para o herói de “Comando Assassino” de Romero, e também o é para aqueles de Carpenter. “Eles Vivem” soube reencontrar esta beleza e este discurso da produção B americana, que se podia dar por desaparecidos: isto é excepcional.

NICOLAS SAADA
(Cahiers du Cinéma nº418, abril de 1989)

Texto contido nas páginas 204-207 do volume 56 da coleção Petite anthologie des Cahiers du cinéma: "Le goût de l'Amérique". Tradução feita por José Roberto Rocha.

15.5.07

Tradução - Lourcelles...

AMARGO PESADELO
(Deliverance)
1971 – EUA (106’) • Dir. JOHN BOORMAN • Rot. James Dickey, do seu romance • Fot. Vilmos Zsigmond (Technicolor) • Mús. Eric Weissberg e Steve Mandel • Elenco John Voight (Ed), Burt Reynolds (Lewis), Ned Beatty (Bobby), Ronny Cox (Drew), James Dickey (xerife), Billy McKinney (montanhês), Herbert Coward (homem desdentado).

Um dos maiores filmes americanos dos anos 70. Como “O Franco-Atirador” (Michael Cimino, 1978), ele oferece esta dualidade muito moderna de ser ao mesmo tempo uma narrativa de ação extremamente intensa e “física”; e uma parábola com encadeamentos filosóficos solidamente construídos, embora semeados com dúvida e ambigüidade. Utilizando de um passeio ecológico que se transforma em um sangrento pesadelo shakespeareano, Boorman apresenta a fascinação pela vida primitiva como uma forma de regressão mental particularmente perigosa e perversa, fadada a conduzir diretamente à tragédia. O homem moderno deve aceitar a civilização, mesmo se suas bases lhe pareçam frequentemente duvidosas; é verdade que a animalidade nele adormecida irá reativar de tempos em tempos uma inclinação à nostalgia, um devaneio de Éden. Mas esta inclinação não possui qualquer chance de ser satisfeita no mundo atual, a não ser como aqui, no horror puro e simples. Os nativos desta região sem poluição e sem progresso técnico vivem os últimos dias de um universo degenerado cuja desaparição seria um absurdo lamentar. Boorman utiliza um ritmo bastante lento, uma trama de artifícios voluntariamente limitados, e uma decupagem ampla pouco afeita aos recursos da montagem para dar o máximo de reverberação concreta e cósmica a cada um dos encadeamentos desta anti-epopéia. Como muitos filmes atuais, “Amargo Pesadelo” se banha numa luz fantástica e inquietante, tão vacilante quanto as certezas dos personagens. Filmagem realizada nas próprias locações onde se passa a ação e na ordem cronológica das seqüências.


. Jacques Lourcelles .

Texto contido nas páginas 378-379 do Dictionnaire du Cinema – Les Films (Aut.: Jacques Lourcelles). Tradução feita por José Roberto Rocha.

8.5.07

Anotações - Bergman...

Entre "Morangos Silvestres" e "Gritos e Sussurros" - filmes lançados em 1957 e 1972, respectivamente - há uma série de mudanças bastante aparentes na obra de Ingmar Bergman: do preto e branco cristalino a um experimental trabalho em cores; das proporções iniciais a que a tela de cinema era limitada a um alargamento que, mesmo não sendo drástico - do 1.37:1 ao 1.66:1 -, traz uma série de implicações na forma como se organizam seus enquadramentos, mais especificamente os característicos close-ups; de um homem como fio condutor de um enredo a outra narrativa que exclui ou simplesmente tipifica - ambas operações levadas adiante com extrema violência - qualquer representação masculina; e ainda, de um drama se não generoso, ao menos repleto de momentos de respiro onde se entrevê um senso de humanidade bastante fugidio - e por isso mesmo tais instantes soam tão preciosos -, a um sufocante filme de terror povoado por monstros onde mesmo a luz é mesquinha diante de toda a escuridão que envolve os personagens.

Impossível não atestar, então, que todas estas vicissitudes apontadas não existem por si só, mas em decorrência de uma mudança de tom baseada em uma dicotomia percebida desde o princípio de sua obra que, mesmo em seus momentos de maior leveza - "Sorrisos de uma noite de verão", por exemplo -, nunca deixa de ser assombrada por um ar de tragicidade iminente. Em seus primeiros filmes, a própria existência deste peso como ponto de tensão das imagens e a maneira como o diretor lidava com ele e o controlava - seja com a desenvoltura cômica do próprio "Sorrisos de uma noite de verão" ou com o esforço dramático um tanto atrapalhado do final de "A Fonte da Donzela" - parecia ser o próprio tema dos filmes em si, ou no mínimo, um de seus aspectos fundamentais. Uma quebra nesta coabitação de registros - ou melhor dizendo, na sua vontade em mantê-la - se esboça durante o início da década 60, através da trilogia composta por "Através de um espelho", "Luz de inverno" e "O silêncio", e vai se concretizar completamente em "Persona", onde a pulsão "negativa" que sempre rondava a obra de Bergman eclode e o filme se assemelha a uma pessoa que depois de muita contemplação finalmente se joga em um abismo. A inacreditável cena em que o próprio negativo se arrebenta e incendeia toma ares bem representativos sob este ponto de vista.

"Morangos Silvestres" e "Gritos e Sussurros" podem não ser exatamente os pontos de partida e de chegada, respectivamente, de todo este percurso descrito, mas se mostram como os exemplares mais representativos de cada um destes momentos, atingindo um tipo de força calcada na sobriedade formal/dramatúrgica que a obra do diretor sueco raras vezes alcança. Daí ser tão revelador notar a maneira com a qual é tratada a memória - e logicamente como ela é construída através de flashbacks - em cada um dos dois filmes. As lembranças, ou mesmo os delírios já que muitas delas sequer são suas, do professor Borg (Victor Sjostrom) em "Morangos Silvestres" causam uma série de efeitos no enredo que, apesar de ser extremamente severo com o personagem - Bergman nunca é condescendente com os seus; ao menos com aqueles que o interessam -, também é modificado por estas cenas de forma a abrigar momentos de alento e beleza ainda possíveis em um mundo que parece a um sopro de se despedaçar. Já em "Gritos e Sussurros", nada de positivo é desencavado dos flashbacks das personagens, funcionando a memória exatamente como a pedra angular do arco de frustrações e sofrimentos que se ergue sobre suas cabeças. Mesmo a pretensamente redentora cena final é filmada com um tom melancólico e cortada tão bruscamente que fica a impressão que, do passado, as únicas coisas possíveis de permanecerem são remorsos e tristezas.

Projeto abortado...

. Paraíba com bola e tudo .

6.5.07

Filmografia - Ingmar Bergman...

. Anos 40 .


1946 - Crise (Kris)
1946 - Chove em nosso amor (Det regnar pa var kärlek)
1947 - Um barco para a Índia (Skepp till India land)
1948 - Música na noite (Musik I moker)
1948 - Porto (Hamnstad)
1949 - Prisão (Fängelse)
1949 - Sede de paixões (Torst)


. Anos 50 .


1950 - Rumo à Alemanha (Till glädje)
1950 - Isto não aconteceria aqui (Sant händer inte här)
1951 - Juventude, divino tesouro (Sommarlek)
1952 - Quando as mulheres esperam (Kvinnors väntan)
1953 - Mônica e o desejo (Sommaren med Monika)



1953 - Noites de circo (Gycklarnas afton)
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 89 minutos


1954 - Uma lição de amor (En lektion I kärlek)



1955 - Sonhos de mulheres (Kvinnodröm)
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 84 minutos



1955 - Sorrisos de uma noite de amor (Sommarnattens leende)
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 108 minutos


1957 - Bakomfilm smultronstället
1957 - Herr Sleeman kommer [TV]



1957 - O sétimo selo (Det sjunde inseglet)
Ano de lançamento: 2003
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 95 minutos



1957 - Morangos silvestres (Smultronstället)
Ano de lançamento: 2003
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 95 minutos


1958 - No limiar da vida (Nära livet)
1958 - Venetianskan [TV]
1958 - Rabies [TV]
1958 - O rosto (Ansiktet)


. Anos 60 .


1960 - Oväder [TV]



1960 - A fonte da donzela (Jungfrukällan)
Ano de lançamento: 2003
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 90 minutos


1960 - O olho do diabo (Djävulens oga)



1961 - Através de um espelho (Sason i en spegel)
Ano de lançamento: 2005
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 89 minutos



1962 - Luz de inverno (Nattvardsgästerna)
Ano de lançamento: 2005
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 80 minutos


1963 - Ett Drömspel [TV]



1963 - O silêncio (Tystnaden)
Ano de lançamento: 2005
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 95 minutos


1964 - Para não falar de todas essas mulheres (För att inte tala om alla dessa kvinnor)
1965 - Don Juan [TV]



1966 - Quando duas mulheres pecam ou Persona (Persona)
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [MODIFICADO DO ORIGINAL – 1.37:1]
Duração: 84 minutos


1967 - Daniel (segmento de Stimulantia)
1968 - A hora do lobo (Vargtimmen)
1968 - Vergonha (Skammen)
1969 - O rito (Ritten) [TV]
1969 - A paixão de Ana (En passion)


. Anos 70 .


1970 - Farödokument 1969 [TV]
1971 - A hora do amor (Beröringen)



1972 - Gritos e sussurros (Viskningar och rop)
Ano de lançamento: 2003
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Widescreen 1.66:1 [ORIGINAL]
Duração: 106 minutos



1973 - Cenas de um casamento (Scener ur ett äktenskap) [TV]
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [ORIGINAL]
Duração: 299 minutos


1974 - Misantropen [TV]



1975 - A flauta mágica (Trollflöjten) [TV]
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Fullscreen 1.33:1 [ORIGINAL]
Duração: 135 minutos


1976 - Face a face (Ansikte mot ansikte)
1977 - O ovo da serpente (The Serpent’s Egg)



1978 - Sonata de outono (Höstsonaten)
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Versátil
Formato de tela: Widescreen 1.66:1 [ORIGINAL]
Duração: 92 minutos


1979 - Farödokument 1979 [TV]


. Anos 80 .


1980 - Da vida das marionetes (Aus dem Leben der marionetten)



1982 - Fanny e Alexandre (Fanny och Alexander)
Ano de lançamento: 2005
Distribuidora: Europa Filmes
Formato de tela: Widescreen 1.66:1 [ORIGINAL]
Duração: 182 minutos


1983 - Hustruskolan [TV]
1984 - Karins ansikte
1984 - Depois do ensaio (Efter repetitionen) [TV]
1986 - Dokument Fanny och Alexander
1986 - De Tva saliga [TV]


. Anos 90 .


1992 - Markisinnan de Sade [TV]
1993 - Backanterna [TV]
1995 - Sista skriket [TV]
1997 - Larmar och gör sig till [TV]


. Anos 00 .


2000 - Bildmakarna [TV]



2003 - Saraband (Saraband) [TV]
Ano de lançamento: 2006
Distribuidora: Sony Pictures
Formato de tela: Widescreen 1.85:1 [ORIGINAL]
Duração: 111 minutos



P.S.: Longe de postar filmografias com a gratuidade dos COPY-PASTE usuais, pretendo fazer deste expediente uma tentativa de montar um tipo de banco de dados no qual os interessados possam se basear ao entrar em contato com a obra dos diretores em questão. Portanto, o principal objetivo destas filmografias é indicar quais filmes estão disponíveis em DVD no mercado brasileiro, trazendo as características dos discos em si: distribuidoras; anos de lançamento; fotos das capas; formato de tela e duração das versões lançadas. Esta iniciativa pretende ser levada adiante com a ajuda de todos que visitem este blog aos quais peço que, notando algum erro ou omissão, aponte-os na caixa de comentários possibilitando as necessárias retificações. Independente da data de postagem, sempre que houver algum lançamento referente a lista apresentada, este tipo de post será prontamente atualizado.

As edições em DVD aqui listadas são - quando houver mais de uma para o mesmo filme - aquelas que eu acho mais apropriadas para assistí-los, buscando sempre levar em consideração a qualidade da imagem e do som, além da fidelidade ao formato e duração originais. Portanto estão de fora, no caso de Bergman, as edições picaretas da Continental. Por outro lado, quando houver uma só edição do filme disponível no mercado, independente de sua qualidade, ela será listada aqui. O mesmo vale para os casos em que o filme só exista editado em VHS. Portanto, ainda mais importante é a colaboração dos que tenham acesso a informações que me tenham passado em branco, já que eu baseio estas listagens em dados encontrados seja na internet ou em livros, e na minha vivência em vídeo-locadoras que, por mais que tenha sido quase doentia, nunca vai deixar de ser extremamente limitada.