Entre "Morangos Silvestres" e "Gritos e Sussurros" - filmes lançados em 1957 e 1972, respectivamente - há uma série de mudanças bastante aparentes na obra de Ingmar Bergman: do preto e branco cristalino a um experimental trabalho em cores; das proporções iniciais a que a tela de cinema era limitada a um alargamento que, mesmo não sendo drástico - do 1.37:1 ao 1.66:1 -, traz uma série de implicações na forma como se organizam seus enquadramentos, mais especificamente os característicos close-ups; de um homem como fio condutor de um enredo a outra narrativa que exclui ou simplesmente tipifica - ambas operações levadas adiante com extrema violência - qualquer representação masculina; e ainda, de um drama se não generoso, ao menos repleto de momentos de respiro onde se entrevê um senso de humanidade bastante fugidio - e por isso mesmo tais instantes soam tão preciosos -, a um sufocante filme de terror povoado por monstros onde mesmo a luz é mesquinha diante de toda a escuridão que envolve os personagens.
Impossível não atestar, então, que todas estas vicissitudes apontadas não existem por si só, mas em decorrência de uma mudança de tom baseada em uma dicotomia percebida desde o princípio de sua obra que, mesmo em seus momentos de maior leveza - "Sorrisos de uma noite de verão", por exemplo -, nunca deixa de ser assombrada por um ar de tragicidade iminente. Em seus primeiros filmes, a própria existência deste peso como ponto de tensão das imagens e a maneira como o diretor lidava com ele e o controlava - seja com a desenvoltura cômica do próprio "Sorrisos de uma noite de verão" ou com o esforço dramático um tanto atrapalhado do final de "A Fonte da Donzela" - parecia ser o próprio tema dos filmes em si, ou no mínimo, um de seus aspectos fundamentais. Uma quebra nesta coabitação de registros - ou melhor dizendo, na sua vontade em mantê-la - se esboça durante o início da década 60, através da trilogia composta por "Através de um espelho", "Luz de inverno" e "O silêncio", e vai se concretizar completamente em "Persona", onde a pulsão "negativa" que sempre rondava a obra de Bergman eclode e o filme se assemelha a uma pessoa que depois de muita contemplação finalmente se joga em um abismo. A inacreditável cena em que o próprio negativo se arrebenta e incendeia toma ares bem representativos sob este ponto de vista.
"Morangos Silvestres" e "Gritos e Sussurros" podem não ser exatamente os pontos de partida e de chegada, respectivamente, de todo este percurso descrito, mas se mostram como os exemplares mais representativos de cada um destes momentos, atingindo um tipo de força calcada na sobriedade formal/dramatúrgica que a obra do diretor sueco raras vezes alcança. Daí ser tão revelador notar a maneira com a qual é tratada a memória - e logicamente como ela é construída através de flashbacks - em cada um dos dois filmes. As lembranças, ou mesmo os delírios já que muitas delas sequer são suas, do professor Borg (Victor Sjostrom) em "Morangos Silvestres" causam uma série de efeitos no enredo que, apesar de ser extremamente severo com o personagem - Bergman nunca é condescendente com os seus; ao menos com aqueles que o interessam -, também é modificado por estas cenas de forma a abrigar momentos de alento e beleza ainda possíveis em um mundo que parece a um sopro de se despedaçar. Já em "Gritos e Sussurros", nada de positivo é desencavado dos flashbacks das personagens, funcionando a memória exatamente como a pedra angular do arco de frustrações e sofrimentos que se ergue sobre suas cabeças. Mesmo a pretensamente redentora cena final é filmada com um tom melancólico e cortada tão bruscamente que fica a impressão que, do passado, as únicas coisas possíveis de permanecerem são remorsos e tristezas.
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