NOÇÕES DE CINEMA MODERNO
É fácil observar uma ruptura básica no cinema de alguns anos para cá, apesar do fato ter-se dado sem que muitos diretores e críticos o percebessem. O notável surgimento de filmes com novas formas narrativas e estilísticas, o número destas produções, seu caráter polêmico e alguns talentos revolucionários vieram trazer um novo mito à cultura contemporânea: o cinema moderno.
A diferença essencial entre cinema clássico e moderno baseia-se nos seus respectivos objetos.
O cinema tradicional pretende ser ideal e absoluto. Focaliza algumas personagens numa determinada época de suas existências mas fornece um juízo extra-temporal sobre suas atitudes. Constrói uma intriga, desenvolve-a até um "clímax" e a finaliza dentro de rígidos princípios de narração e descrição. Não há dúvida, é um cinema construído, que alguns críticos chamam de "arrumadinho".
Todos os meios estão à disposição do realizador para que conte uma estória como se ela fosse a História. A câmera é onisciente; percorre todos os locais, esclarecendo dúvidas e fornecendo detalhes funcionais. Comparece sempre nos momentos certos, "humanos" e dramáticos - terminado este interesse exclusivo, corte. Há a montagem lógica, que tem por objeto relacionar fatos e ocorrências em função de uma intriga lógica, disciplinada e evidente. O crítico francês André Labarthe observa que os cineastas antigos não mediam esforços para obter a visão absoluta de uma determinada situação. Suprimia-se uma parede para colocar o aparelho nesta ou naquela posição - é o cinema tradicional que mais justifica o estúdio.
A captação do espaço e tempo se desenvolvia em termos absolutos. Invariavelmente usavam-se técnicas como o campo-contracampo, frases narrativas, progressão dramática, etc, mesmo quando as condições eram difíceis. Cada espécie de ângulo expunha obrigatoriamente uma situação: um plongée definia a fragilidade, o abatimento ou a solidão do personagem, o contra-plongée, por sua vez, pretendia o efeito inverso. Outro monstro sagrado, o close-up, perdeu inúmeras "significações" para ser sistemática e displicentemente adotado pela moderna narração.
Fala-se do cinema clássico como "arte total", citando-se Vidor, Mamoulian, Lang, entre outros. A grande fase é, sem dúvida, a década de 30, após a eclosão do sonoro.
Alguns especificam como sendo o cinema norte-americano de 1934/36: em todo caso a verdade não está longe.
Os últimos remanescentes desta escola são os acadêmicos; sua formação provém de uma síntese de princípios de cinema mudo com as descobertas de após 1930. Autant-Lara, René Clair, Clouzot, De Toth, Richard Brooks, Mark Robson, Nunnaly Johnson, Robert Wise e outros, a maioria ingleses e certamente todo o "realismo socialista" constituem uma saturação do cinema clássico. Apontam uma crise.
A partir de 1955, alguns realizadores compreenderam a desatualização da sintaxe cinematográfica tradicional e tentaram novas formas. Depois veio the spontaneous cinema norte-americano, a nouvelle vague e as diversas modalidades publicitárias. Um marco fundamental é a estréia de Robert Aldrich, "A morte num Beijo", em 1955.
Em todo caso, é evidente a requisição de uma liberdade expressiva, o desuso da retórica convencional.
No cinema tradicional a mise-en-scène pode ser definida como a construção de filmes. Realizadores como Ophuls, Renoir, Walsh, Mizoguchi, constroem filmes com admirável síntese entre forma e conteúdo, o que não acontece com os acadêmicos em geral. Aqueles são os "homens-orquestras", como diria qualquer manual cinematográfico, trabalhando conjuntamente como romancista, pintor, músico, dramaturgo, decorador etc. Explico-me: não quer dizer que façam a partitura musical ou os décors de um filme, por exemplo; trata-se da mise-en-scène que constitui uma simbiose, uma estruturação orgânica destes elementos, postos a serviço de um fim específico: o filme com visão absoluta (esta "visão", é claro, inclui audição, observação, contemplação).
Os cineastas clássicos podem ser definidos como os "architectes de l'image e du mouvement", como refere-se na contra-capa dos livros da coleção "Cinema d'Aujourd'hui".
Este ponto de vista absoluto é uma espécie de visão divina sobre os homens e o mundo; é um cinema que "vê do alto".
Grande parte do talento dos diretores baseia-se nisto - veja-se Fritz Lang, por exemplo, que vê as personagens com uma certa superioridade, uma leve indiferença - que possibilita uma crítica das mesmas e a consciência da irrefutabilidade da tragédia. Idem em Welles, outro expressionista (ainda carregado por um "neo"); Jean Cocteau declarou que em "Macbeth" a câmera observa os personagens do alto, em plongée, como que encarnando o Destino, refletindo sobre a inevitável fatalidade que os "dirige".
Deus e Destino com D maiúsculo aqui são a mesma coisa.
Já se disse que os grandes filmes (clássicos) apresentam o ponto de vista de Deus sobre o mundo. Mas, como afirmou Sartre, Deus não é artista...
Com o cinema moderno verifica-se uma passagem ao relativo. O cinema desce à altura expressionista, abandona o plongée para situar-se à altura do olho. O cinema deixa de ser Lang para ser Hawks. Esta passagem constitui a essência da ruptura cinema clássico-moderno.
Em primeiro lugar, o filme se localiza diante da realidade, muito vasta e profícua para ser abstraída e composta em doses, ou seja, obedecendo uma estrutura cartesiana. A câmera individualiza-se e toma posição frente à intriga; já não se situa em todos os lugares, posições, e até dois lugares ao mesmo tempo (montagem paralela). Alguns diretores usam a narração subjetiva (na primeira pessoa do singular: Resnais, de certa maneira Welles, Louis Malle, Irving Lerner - devido à estrutura do relato), geralmente entrecortando diálogo com monólogo interior.
Antonioni, Truffaut, Sugawa, Oshima, Yoshida, entre outros, adotam a narração objetiva (na terceira pessoa). Em experimentadores como Jean Rouch, Jean-Luc Godard o ponto de referência é o do homem com uma câmera: o mais avançado conceito de autor de cinema.
O cinema moderno parece estar baseado nas atuais noções de relatividade. Ao invés de pretender um "ângulo absoluto", impossível na vida real, busca o "melhor ângulo possível dentro de uma situação dada". Assim, já não há a idealização da realidade, mas uma integração com o real. A câmera procura captar os objetos tais como são - destituídos de qualquer aura romântica ou de "seus corações românticos". E o diálogo colabora para tanto (Godard, e o cinema americano em geral).
Verifica-se também uma busca do concreto. Grande parte dos filmes modernos passa-se em exteriores reais, localiza-se no contato com a realidade bruta. Invade objetos como automóveis, corredores, o elevador e a rua, em movimento, onde se sente as limitações da captação do real. A "câmera na mão" pode ser considerada como uma forma primitiva de relatividade cinematográfica, fornecida pela sensação de limitação e fragilidade. É justamente aquele "melhor ângulo possível" e para tanto usa recursos mais fáceis como o travelling sem trilhos (que não é absolutamente invenção do cinema moderno), maquinaria reduzida, filmagem com luz natural e sem rebatedores, som direto, pequena equipe. Há maior expansão dos movimentos - como liberdade ao ator - e o resultado é a espontaneidade de filmes como "Cléo das 5 às 7" ou "Sede de sangue". Ou algumas fitas ("Acossado", do Godard, "Shadows", de John Cassavetes, as obras de Jean Rouch e Chris Marker, entre outros) que são inventadas na hora da filmagem.
Não há situações preconcebidas, estas nascem em contato com o espaço e tempo reais, determinados, concretos e individuais. Uma parede imprevista, um gesto não ensaiado, um reflexo solto, são instantes espontâneos e fugazes que, registrados pela objetiva, tornam-se preciosos e vitais: são instantes de liberdade. É o mesmo tratamento dado aos seres e objetos em certos cine-jornais que juntamente com a televisão e o documentário, influenciaram tremendamente o cinema moderno. Estamos em pleno domínio do cinema-ensaio, gênero relativista por essência.
Nestes realizadores verifica-se uma displicência geral na montagem, o amor pela cena longa e os movimentos insinuantes, além de uma absoluta liberdade narrativa (ausência de progressão dramática, sequências longas ao lado de curtas; ritmo na imagem e não na montagem etc).
A improvisação é um processo arriscado, exige muito do diretor mas oferece possibilidades ilimitadas. Constitui justamente a valorização do instante presente e o cinema é "a arte do presente".
Sabe-se que esta mesma valorização verifica-se no documentário; os grandes cineastas da atualidade são, todos eles, documentaristas: Antonioni, Resnais, Visconti (documentaristas da alma). Godard, Losey, Hawks (documentaristas do corpo). Ou, quando adotam uma ficção, dão-lhe um tratamento que pode ser definido como uma ficção documental (Francesco Rosi - especialmente "O bandido Giuliano"; Maselli em "Os delfins", Truffaut em "Uma mulher para dois"; Agnes Varda em "Cléo das 5 às 7", etc). A maior parte dos filmes modernos possui pelo menos um tom documental, especialmente os da nova geração norte-americana. Ou, então, de crônica, como em quase todos os italianos (Antonioni, Visconti, Zurlini, Bolognini, Petri, Maselli, Fellini, Rossellini, De Sica, Damiano Damiani, Vancini, De Sanctis e outros).
A construção rígida, própria dos filmes tradicionais, encaminha o filme a um desenlace preciso; como já disse, desenvolve uma consciência extra-temporal, reflete sobre o destino futuro e passado das personagens etc. Assim, pode-se perfeitamente "prever o que vai acontecer" na estória. A valorização do presente faz com que a cena não exista em função da estrutura e do desenlance, mas em função de si mesma. Cada cena reflete e revela o presente (Antonioni, especialmente em "A aventura"; Losey, Bergman).
De maneira geral, o cinema moderno tenta desenvolver as possibilidades descritivas do cinema que é também a "arte das aparências". "As aparências enganam" - a psicologia tradicional baseia-se neste axioma, mas Godard, Antonioni e Rosi acreditam que não. Por isto, a única possibilidade de conhecimento se dá com a captação da superfície dos seres e objetos, num eterno presente - que constitui o instante privilegiado, o instante de liberdade.
. Rogério Sganzerla .
Texto contido nas páginas 13-20 da coletânea de artigos "Por um cinema sem limite". Publicado originalmente em 1965, em jornal não especificado.
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