31.7.07

Paying my respects - Yang, Bergman, Antonioni...


. Edward Yang (1947-2007) .



. Ingmar Bergman (1918-2007) .



. Michelangelo Antonioni (1912-2007) .

26.7.07

Notas - McG, Preminger, Stevens, Moniz Vianna...

. O mais recente filme de McG vem apenas reforçar a impressão de que a completa falta de liga entre as cenas de seus filmes, o amontoamento obsessivo e vazio de chavões sugados de outros meios – os dois “As Panteras” – ou de uma certa tradição de filmes – este recente “Somos Marshall” –, afora o esvaziamento de qualquer humanidade que pudesse trespassá-los, não constituem partes de um projeto formal contemporâneo ou qualquer coisa similar. São, isto sim, alguns dos inúmeros reflexos da gritante inaptidão cinematográfica, sem falar na completa ausência de sensibilidade estética e narrativa, de um diretor por demais superestimado. Inclusive pelos que o detestam.

. Após finalmente assistir a “Bom dia tristeza” (Bonjour tristesse, 1958), é impossível escapar da evidência cristalina de que Godard, mais que apenas o casting de Jean Seberg para “Acossado”, deve a este filme grande parte dos efeitos conseguidos em sua exploração cromática e espacial do scope em “O Desprezo”. Surpreendente também o quanto a severidade do tom fúnebre em que o filme de Preminger pouco a pouco mergulha, é de pronto assumida no filme de Godard, que desde o início apenas trata de deixá-la transbordar. Os dois filmes juntos formam um dístico incontornável sobre a morte do cinema. Mesmo para os que não acreditam nisto.

. A beleza das imagens de “Os brutos também amam” (Shane, 1953) nasce em grande parte da exatidão de George Stevens na escolha das locações, que inclusive permeiam os gestos dos personagens de um tom épico que nasce do mais mundano dos esforços físicos, como arrancar um toco de árvore do terreno de uma pequena fazenda. A trama, pouco inventiva e com personagens extremamente simplistas, não dá conta do retrato crepuscular do oeste romântico, embora esta pareça ser sua principal proposta – daí o uso da criança e de seu rito de passagem como fio condutor –, mas há um certo interesse quando o realismo duro de Stevens parece acenar para a própria impossibilidade deste oeste ter existido. Na verdade, um dos maiores interesses do filme, extremamente mal montado como é o usual em sua obra, é justamente este embate constante entre o roteiro e as imagens. Não é um grande trabalho, mas é infinitamente mais instigante que os outros filmes do diretor que tive oportunidade de ver.

. “Hitchcock pode mentir. Como pode, também, apresentar o filme como costuma apresentar seu famoso programa de televisão. A TV é a TV – o cinema, outra coisa, é o cinema, e ele é um dos que sabem disso. E The wrong man é cinema: um dos filmes mais inteligentes do artista, não importando a posição anômala que ocupa, quanto às intenções e o objetivo, na sua obra. Anômalo como Lifeboat [Um barco e nove destino] e Under Capricorn [Sob o signo de Capricórnio]. A melhor entre as anomalias – e filme tão bom quanto os melhores entre os ensaios hitchcockianos mais legítimos.” Alguns críticos só batem com o decorrer dos anos e com o cair de certos preconceitos. Antonio Moniz Vianna é um deles, e é impressionante o quanto há momentos incisivos como este em suas críticas. Anacrônico, certamente. Graças a Deus.

23.7.07

Anotações - Fred Astaire...


Qualquer olhar apressado sobre os filmes de Fred Astaire é o suficiente para confirmar tudo o que já foi dito acerca deles, desde a importância no imaginário americano de seu ciclo de filmes – de um otimismo contagiante – com Ginger Rogers na RKO, rodados em sua maioria durante o período da Depressão americana; até a óbvia, e freqüente, constatação de que ele era um dançarino fenomenal só comparável no cinema a Gene Kelly. Imerso dentro deste emaranhado de lugares-comuns é fácil deixar escapar uma análise mais detida sobre uma obra aparentemente tão leve que beira o leviano, além de desprovida de grandes arroubos visuais. Com o decorrer do tempo ela mesma acabou por ser relegada pela crítica a certo tipo de curiosidade histórica de pouca relevância frente às grandes comédias musicais da época, e se “A Roda da Fortuna” acaba por ser citada entre elas é muito menos por Astaire que por Vincente Minnelli.

Na verdade, o que faz do corpo da obra de Astaire algo sem grande paralelos na história do cinema americano é justamente a maneira como ele consegue transcender graciosamente toda esta estrutura que tende a padronizá-lo, fazendo isto justamente com o que se espera de comum nele: a dança. É como se ele próprio criasse filmes espetaculares dentro de filmes não raro ineptos. Por isto não há pudor - já o apontou Douchet - em dizer que se trata de sua obra; mesmo que seja também de outro, nunca deixará de ser irremediavelmente sua. Esta operação é realizada sem grandes fissuras, como um milagre que nasce do ordinário e mais banal, com a desenvoltura dos que podem começar a cantar e dançar em uma cena qualquer sem que isto choque de alguma forma o andamento da narrativa. É certo Astaire foi o maior dentro desta arte que pode ser definida como sendo da elegância. O ator por excelência do movimento contínuo e rigoroso, da ilusão absoluta de liberdade física. Mais ainda, Astaire faz de sua dança um tipo de filosofia corporal que se choca frontalmente contra o determinismo e acena para a possibilidade infinita que há no ser humano.

Assim se explicam os momentos de profunda beleza escondidos em filmes de diretores bastante limitados – Mark Sandrich na maioria de seus filmes com Ginger Rogers – ou claramente desconfortáveis com o gênero – George Stevens em “Ritmo Louco” (Swing Time, 1936) – chegando a suprir os próprios filmes. Assim se explica, ainda, o quanto um excelente artesão como Charles Walters – sem esquecer de Robert Alton que dirigiu os números musicais de vários de seus filmes – ou mesmo Vincente Minnelli, o maior expoente do gênero, ganham quando dispõem de Astaire em seus filmes. Tudo isto alcançado com sobriedade e uma entrega bem particular a cada um destes trabalhos - perfeccionista notório, muitas vezes repetia cenas até a exaustão, mesmo com os pés empapados em sangue -, sem precisar eclipsar o filme grosseiramente, afinal, para Astaire, o cinema sempre foi uma questão mais de classe do que de choque.

7.7.07

Transcrição - Nelson Rodrigues...


Como é antigo o passado recente! - eis a exclamação que não me farto de repetir. E, realmente, como a melindrosa de 1929 é anterior a Sarah Bernhardt. Como o Ford de bigode é mais velho do que a charrete de Ben-hur. Aí está o óbvio que ninguém enxerga. E, no entanto, qualquer memorialista tem escrúpulo de fazer a história da véspera. Meu Deus, o que aconteceu ontem ou, menos do que ontem, o que aconteceu há quinze minutos pertence tanto ao passado defunto como a primeira audição do "Danúbio azul".

Bem. Fiz este breve reparo para referir uma dura experiência que acabo de sofrer, na carne e na alma. Foi sexta-feira e, portanto, há 72 horas. Saímos os dois casais: - eu e Lúcia, Celso Bulhões da Fonseca e Teresa. Eis o nosso destino: - Bruni-Copacabana, íamos ver Terra em transe, de Glauber Rocha. Na própria tarde de sexta-feira, perguntei a um conhecido: - "Bom o filme?". E o sujeito, que é um legionário da esquerda idiota, respondeu: - "Fascista". Insisti: - "Rapaz, não perguntei se era fascista. Perguntei se era bom".

(Singular geração esta que anda por aí. Imaginem rapazes e raparigas - digamos "raparigas", como Júlio Diniz - que se fingem mais imbecis do que são. E assim desponta nas esquerdas brasileiras um tipo único, inédito, empolgante, de cretino. É o débil mental por simples pose ideológica; e o sujeito se põe a babar na gravata, achando que só assim serve ao socialismo.)

Diga-se de passagem que tivemos, eu e o desafeto de Terra em transe, uma discussão truculenta. Disse-lhe que, para meu gosto, tanto fazia filme comunista, fascista, espírita, budista, macumbeiro ou jacobino. Eu queria, apenas, com minha feroz simplicidade, que fosse um bom filme e nada mais. O bate-boca não chegou a nenhuma conclusão inteligente. Por fim, perdi a paciência e fiz-lhe o apelo: - "Não me cumprimente mais. É favor. Me negue o cumprimento".

Largo o falso idiota (realmente, é um rapaz de talento), apanho um táxi e passo na casa do Hélio Pellegrino. Lá encontro o Gilberto Santeiro, jovem cineasta patrício. O cinema brasileiro tem uma meia dúzia (não mais) de rapazes prodigiosos. São possessos de sua arte. Potencializados de paixão, chegam a meter medo. E o nosso Gilberto Santeiro é um dos que matam e morrem por cinema. Pergunto-lhes: - "Que tal Terra em transe?". Deu-me a resposta fanática: - "Genial!".

A fé sempre me comove, mesmo que o santo ou o deus não a mereça. Duas mãos postas e mais a luz de um círio fazem uma cena irresistível. O Gilberto Santeiro não tinha a vela, mas estava quase de mãos postas. E assim, crispado de uma fé autêntica, ele me tocou. Levantei-me: - "Gilberto, vou ver o filme e depois te falo".

Confesso que, na casa do Hélio Pellegrino, comecei a gostar de Terra em transe. Mais tarde, entrando no Bruni-Copacabana, não tinha mais dúvida: - "Gostei", eis o que pensava. E já me via dizendo ao Gilberto Santeiro: - "Genial". Na porta do cinema, paro um momento. Outro rapaz, flor das esquerdas, veio me dizer: - "O elenco não gosta do filme. Está indignado. Acha o filme fascista". O sujeito afirmou-me, quase sob palavra de honra, que Paulo Autran, Danuza, e outros, e outros, estrebuchavam de furor impotente e sagrado. Não sei se é verdade. Passo adiante o que me foi dito.

A indignação de um elenco não é um fenômeno novo para mim. A maioria dos meus intérpretes representam os meus textos com o maior desprazer e humilhação. Mas, como ia dizendo: - entrei no cinema e vi o filme. Entre parênteses, acho comovente a figura de Glauber Rocha por muitos motivos, inclusive este: - é um neurótico. Está a um passo da loucura; e essa proximidade me parece vital para a obra de arte. Não me venham falar de Goethe, que era um suicida e o mais lúgubre dos suicidas: - o fracassado. E nós sabemos que o brasileiro não tem nenhum motivo para ser neurótico. Cada um de nós há de morrer agarrado à sua angústia.

Fiz, durante Terra em transe, o que fez, tempos atrás, Cyro dos Anjos. Ao lado de Carlos Castelo Branco, o autor de Abdias assistia à minha peça Dorotéia, no já demolido Teatro Phoenix. E o tempo todo Cyro cochichava para o Castelinho: - "Que mistificação! Que mistificação!". Sexta-feira, sessão das dez a meia-noite, eu repetia: - "Que mistificação! Que mistificação!". E o Celso Bulhões da Fonseca ouvia e calava. Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais de Terra em transe.

Refiro-me ao momento em que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar e este faz uma pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade, mansa, translúcida, eterna: - o povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim, eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir, volta a babar na gravata.

Saio do cinema e, antes de entrar no automóvel do Celso faço este resumo crítico: - "Terra em transe é um texto chinês de cabeça para baixo". A platéia não entendera nada, mas, coisa curiosa: - suportara as duas horas com uma paciência ou, mais do que isso, com um respeito e um silêncio totais. Era como se estivéssemos, todos, numa igreja. E se por lá aparecesse uma mosca, seu vôo faria um ruído insuportável (súbito, descubro que não há moscas na missa). Domingo encontrei-me, no Estádio Mário Filho, com o Luís Carlos Barreto. Desfechei-lhe a piada: - "Um texto chinês de cabeça para baixo". Cuidei que ele ia revidar, irado. Pelo contrário: - achou uma graça infinita. Soube, posteriormente, que anda por toda parte, fazendo uma promoção feroz da graça cruel.

E, no entanto, Terra em transe não morrera para mim. Da madrugada de sexta para sábado e domingo, continuei agarrado ao filme. E sentia por dentro, nas minhas entranhas, o seu rumor. De repente, no telefone, com o Hélio Pellegrino, houve o berro simultâneo: - "Genial!". Estava certo o Gilberto Santeiro, quase um menino. Sim, pálido de certeza como um fanático. Nós estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda.


. Nelson Rodrigues .

Texto contido nas páginas 228-230 da coletânea de crônicas "A menina sem estrela - Memórias". Publicado originalmente em 1967, no jornal "Correio da Manhã".